As raízes da esquerda como movimento político moderno datam do final do século 18 e sobretudo do século 19. Então o Iluminismo trazia promessas de que a razão humana compreenderia o mundo e o transformaria. De um lado avanços impressionantes ocorriam na Física, Biologia, Química e Saúde. Por outro o homem passava a olhar a sociedade como objeto de conhecimento.
Vê-se então que a essência do pensamento de esquerda reside na compreensão, na crítica e por consequência nos projetos de transformação. Isso já coloca uma questão fundante: a direita posiciona-se pelo status quo, ao passo que a esquerda deve compreendê-lo e formular uma alternativa que a um só tempo seja viável, positiva e capaz de conseguir os apoios necessários para a mudança. Seu desafio é bem maior. Desnecessário dizer também, a título de realismo, que muitas propostas e projetos de transformação tiveram resultados negativos, como o comunismo real.
Hoje vivemos um momento em que o debate público rapidamente sepulta qualquer tentativa de crítica e mudança, o que se deve em parte à falta de legitimidade da classe política, à ausência de massa intelectual nas discussões, aos baixos níveis de interesse e formação política dos cidadãos e, isto é importante ressaltar, à própria estratégia de quem defende o status quo, pois retirar a credibilidade da discussão é a melhor forma de impedir o debate de alternativas.
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Em uma posição personalíssima, vejo um quadro hoje muito difícil para a esquerda, mas não em termos de tempo histórico. O dia de hoje no Brasil está engolfado por uma sociedade em crise social (extrema desigualdade, violência, baixa cultura cívica) e na qual, por responsabilidade da esquerda institucional e virtude dos seus adversários, os próprios meios de criar solução estão desacreditados. Os explorados em nossa sociedade não acreditam em ação coletiva política: sindicatos, Estado, movimentos sociais, políticas públicas. Por outro lado, como a necessidade se impõe, aceitam sem perceber tal ação coletiva naquilo que acreditam ser de outra natureza, a religião institucional, a qual acaba – em vários casos – os instrumentalizando. Também, diante da insegurança da vida como um todo, apelam para os aparatos de segurança e aceitam toda e qualquer forma de repressão a qual recai fortemente sobre eles mesmos.
Meu ponto de vista – e personalizo novamente a redação para pesar a mão no fato de que se trata de uma opinião pessoal sob risco mas necessária – é que devemos partir da antiga crítica ao capitalismo: a forma como nós nos reproduzimos como sociedade baseia-se em duas explorações fundamentais: de pessoas por pessoas e da natureza.
Os desafios da esquerda, a serem superados agora ou no futuro, são: i) a viabilidade de ações políticas em espaços transnacionais, pois que a globalização – especificamente a abertura dos canais comerciais e sobretudo financeiros entre as nações – diminui a margem de manobra dos estados nação; ii) a conversão dos movimentos identitários em forças que questionem de forma unificada o capitalismo. Entendo que parte da energia dos movimentos identitários advém das condições geradas pelo capitalismo, como a exclusão e o preconceito. Contudo, outra parte deriva daquilo que reforça lógicas capitalistas, pois que tais movimentos também se alimentam da cultura narcisista, individualista e por vezes até consumista na qual estamos imersos; iii) ligado aos pontos anteriores, viabilizar alternativas econômicas que façam sentido para o universo de explorados e que sejam de implantação viável.
A meu ver, os dois modos de atuar pela transformação da sociedade são a jornada de trabalho e qualidade dos postos de trabalho e a mudança no paradigma ambiental.
Embora proliferem nomes como empregado, MEI, empreendedor, pequeno empresário, etc., o que vemos é que no Brasil mais de 100 milhões de pessoas ou trabalham para outros ou para si próprios, enquanto uma pequeníssima classe expropria a maioria dos ganhos. A extrema desigualdade que ostentamos é prova contundente do mecanismo de exploração. Assim, há de se retomar de forma incisiva e clara o debate sobre exploração econômica no capitalismo brasileiro. Urgente!
Quanto à natureza, deve-se trabalhar em conscientizar as pessoas que outra relação com a água, as florestas, o solo, o espaço é urgente e necessária. Retornando aos ensinamentos de Marx e Engels, as forças produtivas podem nos ajudar a solucionarmos vários dos problemas ambientais, contudo as relações de produção precisam ser modificadas – em outras palavras, há de se ter muita tecnologia, mas que ela seja usada de formas socialmente benéficas.
Após a eleição de outubro último alguns jornalistas e analistas, diante do que entenderam como derrota da esquerda, afirmaram que esta deveria modificar-se para entender a sociedade brasileira, especialmente assumir o empreendedorismo como objetivo de vida e o fervor religioso como valor. Fica claro que tal diagnóstico poderia até servir para que uma determinada classe política vencesse eleições, mas seria a traição de um processo transformador. Como dito, hoje estamos numa encruzilhada para a esquerda, mas o tempo histórico sob o qual ela atua é diferente. A nova esquerda para a qual a de hoje deve evoluir precisa de reafirmação de seus grandes propósitos e valores, e criatividade para construir o caminho.
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