José Luis Oreiro *
Desde o início de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem se manifestado publicamente contra o elevado patamar da taxa de juros Selic – problema esse que não é de agora, mas se instalou na economia brasileira a partir do Plano Real. A indignação do presidente Lula tem razão de ser. Com efeito, no acumulado em 12 meses até agosto de 2024, o pagamento de juros sobre a dívida do setor público consolidado (União, estados, municípios e estatais) totalizou R$ 855 bilhões (o equivalente a 7,55% do PIB), conforme informação divulgada no site do Banco Central do Brasil. No mesmo período, o déficit primário do setor público consolidado foi de R$ 256,3 bilhões, valor esse que inclui R$ 90,7 bilhões de precatórios e Requisições de Pequeno Valor (RPV´s) que foram objeto de calote durante o governo Bolsonaro, por intermédio da Emenda Constitucional 23/01. Isso significa que o pagamento de juros da dívida do setor público consolidado é um valor 3,4 vezes superior ao déficit primário.
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Face a esses números qualquer pessoa sensata diria que a causa principal do desequilíbrio fiscal brasileiro é de ordem financeira, e procuraria buscar maneiras de reduzir o montante de gastos com pagamento de juros da dívida. Infelizmente, o gasto público com pagamento de juros se tornou no Brasil uma “despesa ausente” no debate sobre ajuste fiscal (clique aqui para saber mais a respeito). O debate sobre ajuste fiscal, até recentemente, estava exclusivamente centrado na redução de despesas obrigatórias, como as despesas previdenciárias – o que foi feito por intermédio da Reforma Previdenciária de 2019, durante o governo Bolsonaro –, as despesas com salários dos servidores públicos federais – que ficaram sem qualquer tipo de reajuste no período 2020-2022 – e as despesas com assistência social, as quais foram objeto de (sic) estudo de redução no governo Bolsonaro, por intermédio da desindexação de benefícios sociais como o BPC do salário mínimo.
Foi apenas em 2023 – no bojo da introdução do Novo Arcabouço Fiscal pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad – que o governo federal começou a enfatizar as receitas tributárias perdidas ao longo dos anos por intermédio de isenções tributárias sem sentido econômico, que apenas serviam para alimentar de privilégios aqueles que já são privilegiados de longa data na estamento social brasileiro. Nesse contexto, o presidente Lula teve o mérito de introduzir no debate público, desde o início de seu terceiro mandato, o “elefante na sala” que consiste no pagamento exorbitante de juros da dívida pública.
O presidente Lula também está correto na sua percepção de que o comportamento corrente e as previsões futuras de inflação, mesmo aquelas divulgadas pelo polêmico Boletim Focus, não justificam um novo ciclo de elevação da taxa de juros. A política monetária, ao contrário do que querem fazer parecer os agentes do mercado financeiros e muitos veículos da grande imprensa, está longe de ter o fundamento científico que existe nas chamadas ciências duras – como, por exemplo, a Física. Se assim o fosse, bastaria alimentar um modelo macroeconométrico de última geração, com os dados da economia brasileira em algum computador superpotente para que ele fosse capaz de mostrar, com precisão de várias casas decimais, qual será o comportamento da inflação futura dada a taxa Selic praticada hoje. E, assim, decidir se e em qual magnitude a taxa básica de juros deve ser alterada para que a inflação permaneça dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação.
No entanto, as decisões sobre a taxa básica de juros são tomadas por nove pessoas em colegiado, em uma reunião de dois dias, a portas fechadas. Está claro que a decisão envolve, como não poderia deixar de ser – dada a incerteza que os economistas têm a respeito do funcionamento da economia e o controle imperfeito que a política monetária tem sobre a trajetória futura da inflação – o “julgamento humano”, o qual está sujeito a vieses cognitivos e de interesse, seja privado ou de classe. Daqui se segue que não se pode descartar a hipótese da política monetária ser conduzida com base nos interesses particulares daqueles que tem a “potestade” de conduzir a política de juros em nome dos interesses da sociedade, em vez de sê-lo com base nos interesses gerais dessa sociedade. Trata-se do problema de agência sobejamente conhecido pelos economistas que fizeram seu doutorado a partir dos anos 1980.
O problema dos juros no Brasil é uma questão com a qual me deparo nas minhas pesquisas e reflexões há mais de 20 anos. Com efeito, no ano de 2002 publiquei meu primeiro artigo científico sobre o tema na prestigiosa Revista de Economia Política, editada pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira. Desde então tenho revisitado esse tema com frequência em meus trabalhos acadêmicos, culminando com a publicação do livro Macroeconomia da Estagnação Brasileira, em coautoria com Luiz Fernando de Paula pela Alta Books (2021).
Ao analisar a experiência da economia brasileira entre 2003 e 2016, constatamos em nosso livro que a taxa de juros Selic medida em termos reais, ou seja, descontada a taxa de inflação, sistematicamente havia permanecido durante todo esse período acima do seu valor de equilíbrio de longo prazo, dado pela soma entre a taxa real de juros da T-notes norte-americanas de cinco anos de prazo de maturidade e o prêmio de risco país medido pelo EBMI+ calculado pela J.P. Morgan. Nossos cálculos apontavam para uma Selic real de equilíbrio de 3,68% ao ano, ao passo em que o valor médio real da taxa Selic nesse período foi de 6,25% ao ano.
Uma taxa de juros acima do seu valor de equilíbrio deveria produzir pressões desinflacionárias que, mais cedo ou mais tarde, deveriam fazer com que a inflação convergisse para a meta inflacionária, permitindo que o Banco Central possa reduzir, ainda que de forma gradual, a taxa de juros até o seu nível de equilíbrio. No entanto, não foi esse o comportamento observado da taxa de inflação. Com efeito, no período compreendido entre janeiro de 2003 e setembro de 2017, ou seja, um período de quase 14 anos, a inflação acumulada em 12 meses permaneceu sistematicamente acima do centro do regime de metas de inflação, à exceção de um breve período compreendido entre maio de 2006 e janeiro de 2008.
A inflação no Brasil se mostra resistente à taxa de juros, em uma semelhança notável com pessoas que padecem de diabetes tipo-2, quando níveis elevados de glicose no sangue tem origem na resistência à insulina. A resistência da inflação à taxa de juros acaba demandando que o Banco Central fixe tal taxa em um patamar mais alto, e por um período mais longo de tempo do que seria necessário caso o paciente, no caso a economia brasileira, não apresentasse esse sintoma de resistência.
De onde vem a resistência da inflação à taxa de juros? Essa é uma questão para a qual eu só consegui apresentar uma resposta tecnicamente satisfatória no ano de 2023. Foi quando publiquei, em conjunto com o professor Júlio Fernando Costa Santos, da Universidade Federal de Uberlândia, um trabalho intitulado A Estabilização Inacabada do Plano Real, em um livro organizado pelos professores Fernando Ferrari Filhos (UFRGS) e Luiz Fernando de Paula (UFRJ) e publicado no Reino Unido pela Editora Edward Elgar (ver aqui). Nesse trabalho nós mostramos que a manutenção dos mecanismos de indexação de contratos de longo-prazo (com prazo de maturidade superior a um ano) após o Plano Real – no qual se eliminou apenas a indexação de curto-prazo – faz com que a taxa de inflação no Brasil seja mais dependente da inflação passada do que das expectativas de inflação futura. Em outras palavras, no Brasil a inércia inflacionária ainda é um componente importante para explicar o comportamento da taxa de inflação, apresentando um valor bastante superior ao verificado, por exemplo, na economia dos Estados Unidos.
Esse achado tem consequências importantes para a condução da política monetária. Em primeiro lugar, o problema da “desancoragem de expectativas”, citado recentemente como causa do novo ciclo de elevação da taxa de juros, tem pouca relevância para explicar o comportamento da taxa de inflação. A inflação passada e o comportamento da taxa de câmbio são muito mais relevantes para explicar a inflação presente do que as expectativas de inflação. A relação entre taxa de câmbio e inflação, por sua vez, sugere que o mecanismo pelo qual a inflação acaba por ceder aos ciclos de elevação da Selic se dá por intermédio de valorização da taxa de câmbio, a qual tem um efeito nefasto sobre a competitividade da indústria brasileira, algo evidenciado amplamente no debate sobre o problema da desindustrialização brasileira.
Isso posto, para que seja possível resolver de maneira definitiva o problema dos juros elevados no Brasil é necessário completar a estabilização inacabada do Plano Real, ou seja, eliminar todos os mecanismos de indexação de contratos da economia brasileira por intermédio de uma reforma monetária, restabelecendo assim o papel da moeda corrente da economia brasileira como exclusiva unidade de conta em todos os contratos vigentes em território nacional. Isso inclui, por suposto, os títulos da divida pública, notadamente aqueles que são indexados à taxa Selic. Ou seja, as Letras Financeiras do Tesouro (LFT), desenhadas para permitir a operação da política monetária no período de inflação alta, mas que perderam toda a sua funcionalidade após a estabilização conseguida com o Plano Real. A existência de títulos da dívida pública indexados à taxa Selic reduz a potência da política monetária ao obstruir um dos canais pelos quais a taxa de juros pode afetar o nível de atividade econômica e a taxa de inflação, qual seja, o “efeito riqueza”.
Além do problema de resistência da inflação à taxa de juros, a institucionalidade do Regime de Metas de Inflação no Brasil também contribui para o problema dos juros elevados. Recentemente, um grupo de renomados economistas brasileiros publicou uma carta aberta ao Conselho Monetário Nacional na qual defendem uma revisão da meta de inflação vigente de 3% para 4% ao ano. Eu não tenho dúvida de que uma meta de inflação de 3% ao ano é uma meta irrealista para o Brasil, dado que a inflação média desde que o regime de metas de inflação foi implantado no Brasil, em meados de 1999, é de cerca de 6% ao ano, ou seja, o dobro da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional. Qual o sentido prático de se fixar uma meta de 3% quando o histórico de longo-prazo (25 anos) do regime de metas de inflação aponta claramente que se trata de um objetivo inalcançável, exceto por períodos muito curtos de tempo (como em 2006) e como decorrência de uma forte sobrevalorização cambial, que aprofunda a desindustrialização da economia brasileira?
Ademais, as mudanças climáticas, em curso no planeta Terra devido à emissão de gases de efeito estufa, terá efeitos adversos sobre a produtividade agrícola no Brasil, impactando negativamente a dinâmica da inflação de alimentos. Por mais poderosos que os membros do Copom acreditem ser, variações da taxa Selic não são capazes de reverter o impacto que as mudanças climáticas terão – e aparentemente já têm – sobre a inflação de alimentos e, por intermédio dela, sobre a inflação medida pelo IPCA. Nesse contexto, o bom senso e o pragmatismo indicam uma elevação da meta de inflação, até porque a credibilidade da autoridade monetária não se conquista por intermédio da definição de metas inexequíveis, mas pelo cumprimento estrito das metas estabelecidas.
No entanto, os problemas de formatação institucional do regime de metas de inflação não se limitam ao valor numérico do centro da meta. Em primeiro lugar, deve-se observar que o uso do IPCA cheio, em vez dos núcleos de inflação, produz um viés altista para a taxa de juros – dado que não se faz, ao menos no nível do debate público, uma distinção entre aqueles componentes da inflação que são sensíveis à variação da taxa de juros daqueles que dependem das condições de oferta, que são influenciadas por fatores como regime pluvial, desastres naturais e instabilidade geopolítica (que se manifesta em valorização do dólar frentes às moedas dos países em desenvolvimento), e são insensíveis à taxa Selic.
A título de exemplo, enquanto o IPCA-15 acumulado em 12 meses apresentou uma alta de 4,12%, em setembro, para 4,47% em outubro – puxado pelo aumento da energia elétrica (5,29%), devido ao aumento da bandeira tarifária para Vermelho II, e da alimentação em domicílio (0,95%), valor esse perigosamente próximo do limite da meta de inflação para 2024, que é de 4,5% –, a média dos núcleos de inflação no acumulado em 12 meses se encontra em 3,81%. Valor esse confortavelmente abaixo do limite superior do regime de metas de inflação para 2024.
Além do problema do uso da inflação cheia em vez do núcleo de inflação, o regime de metas de inflação se tornou mais rígido em tempos recentes. Com efeito, o presidente Lula assinou, em 26 de junho de 2024, o Decreto 12.079, que “estabelece nova sistemática de meta para a inflação como diretriz para fixação do regime de política monetária”. De acordo com a nova sistemática, o regime de metas de inflação no Brasil passa (sic) a ser contínuo, ou seja, o Banco Central do Brasil passa a ser obrigado a manter a inflação acumulada em 12 meses, dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação em todos os meses do ano!
Previamente ao decreto-lei o Banco Central se comprometia a entregar a inflação dentro do intervalo de tolerância ao final do ano-calendário, o que dava alguma flexibilidade para acomodar a sazonalidade normal da inflação ao longo do ano. Agora, o decreto que o presidente Lula assinou obriga o Banco Central a manter a inflação dentro do intervalo de tolerância durante todo o ano-calendário, considerando-se descumprimento da meta de inflação o caso em que a inflação acumulada em 12 meses fica acima do teto do regime de metas por seis meses consecutivos. Esse decreto transformou algo que já era ruim – um regime de metas de inflação pouco flexível[1] – em algo ainda pior. Não tenho dúvida de que esse decreto-lei deverá adicionar algumas doses de pressão para a elevação da taxa Selic nos próximos meses.
Por fim, mas não menos importante, por que razão o único objetivo da política monetária deve ser o controle da taxa de inflação? Nos Estados Unidos, o Federal Reserve tem em seus estatutos que sua missão é assegurar a estabilidade de preços ao mesmo tempo em que mantém o nível de emprego o mais próximo possível do “pleno-emprego”. Algo similar deveria ser pensado para o caso brasileiro. O problema prático consiste em definir exatamente o que significa pleno-emprego. A teoria econômica convencional define o pleno-emprego como a taxa de desemprego que é compatível com a estabilidade de médio-prazo da taxa de inflação. Essa definição é tão precisa quanto inútil, pois trata-se claramente de uma variável que só podemos observar a posteriori: enquanto a inflação não apresentar uma tendência nítida de elevação no médio prazo a economia ainda não terá alcançado o pleno-emprego. Esse parece ser o caso atual da economia brasileira: apesar da queda consistente da taxa de desemprego nos últimos 18 meses, não há uma tendência nítida de elevação da taxa de inflação no médio prazo. A economia brasileira aparentemente não se comporta como o esperado pela teoria aceita pelos economistas convencionais.
A razão para essa divergência entre o esperado pelos economistas e o observado na prática decorre do fato de que a teoria aceita simplesmente não é aplicável ao caso brasileiro. Aqui peço ao leitor que permita uma breve digressão teórica. O conceito de taxa de desemprego de equilíbrio supõe uma economia madura, ou seja, uma economia na qual toda a força de trabalho foi transferida para o setor moderno ou capitalista da economia, de forma que não existem diferenciais significativos de produtividade entre os setores de atividade econômica. Ora, basta uma simples inspeção na estrutura do mercado de trabalho brasileiro para constatarmos que essa condição não se aplica ao Brasil. Menos de 50% da força de trabalho tem um vínculo formal de emprego, o restante está desempregado, ou tem um emprego informal ou é autoempregado. Atualmente existe uma “glamourização” do trabalhador autoempregado, que é retratado como um “empreendedor”, equivalente em status a um Bill Gates ou um Elon Musk. Nada mais distante da realidade.
A imensa maioria dos nossos empreendedores não é formada por proprietários dos meios de produção, mas dispõe apenas de sua própria força de trabalho. Eles, na verdade, estão executando um “bico” para poder pagar as contas no final do mês e, assim, sustentar a si mesmos e a suas famílias. Isso significa que, no Brasil, existe um enorme desemprego disfarçado, constituído por trabalhadores que poderiam estar executando tarefas mais produtivas se estivessem formalmente empregados no setor moderno ou capitalista da economia. Isso tem implicações práticas em termos de política monetária: se o Banco Central não interromper um ciclo de crescimento do nível de renda e de emprego por intermédio de uma elevação precoce da taxa de juros, os trabalhadores poderão ser transferidos das atividades de baixa produtividade no setor informal ou “empreendedor” da economia para atividades de média ou alta produtividade no setor moderno ou capitalista.
O resultado será uma elevação da produtividade média do trabalho devido a mudança na composição setorial do emprego. Essa elevação da produtividade poderá atuar como uma potente força desinflacionária que anule eventuais pressões inflacionárias decorrentes do crescimento a taxas mais robustas. Para que isso ocorra, no entanto, o Banco Central precisa ter uma política de controle inflacionário de médio prazo, na qual o objetivo seja manter a inflação dentro do intervalo de tolerância em um horizonte mais longo de tempo (18 ou 24 meses). Ou seja, é necessário caminhar no sentido de uma maior flexibilidade na condução do Regime de Metas de Inflação, exatamente o inverso do decreto assinado em junho deste ano pelo presidente Lula.
Eu termino esse artigo explicando ao leitor o porquê do título. O título se inspira no romance clássico de Ernest Hemingway Por quem os sinos dobram?, publicado em 1940, que retrata os horrores da Guerra Civil Espanhola. Na adaptação do livro para o cinema, em 1943, é proferida a frase que se tornaria mundialmente conhecida “[…] Não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Essa frase remete à ideia de que a morte de qualquer pessoa é uma tragédia para toda a humanidade. Pois bem, a manutenção da taxa de juros em patamares elevados é uma tragédia para todos os quase 210 milhões de brasileiros. Já passou do momento de enfrentar e resolver esse problema, antes de seja tarde demais.
[1] Sobre o problema da rigidez do regime de metas de inflação no Brasil ver A experiência internacional de regimes de metas de inflação: uma análise com painel dinâmico (Nova Economia).
* Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. E-mail: joreiro@unb.br
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