Na semana passada a gente veio aqui neste espaço, cheio de esperança, falar de uma internet idealizada pela Unesco para a paz mundial, confiável e transparente.
Hoje, eu vou me contradizer! Eu me permito romper meus limites para dizer: gente, a internet virou um penico! E isso é sério! Como assídua ouvinte do programa O Assunto, da Globo News, eu ouvi um influencer dizer que, às vezes, olha para uma mulher bonita e imagina como seria a cabeça dela decepada. O tema do debate era: “Redpill – a misoginia como lucro”.
Misoginia pode ser entendido como ódio às mulheres. Uma coisa é ter sentimentos ruins na questão de gênero, ou seja, as questões do masculino e do feminino. Outra coisa é incitar o discurso de ódio na sociedade em rede, em que tudo está conectado.
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Para ter uma ideia do problema, a ONG Safernet apurou que o crime de misoginia cresceu 250% na internet de 2021 a 2022, ou seja, conforme o relatório divulgado em 7 de fevereiro deste ano, no Dia da Internet Segura, a ONG recebeu mais que o dobro de denúncias de crimes de ódio praticados contra as mulheres no intervalo de um ano. Os irmãos desses crimes são a xenofobia, a intolerância religiosa, o racismo, entre outros crimes de ódio às pessoas ou à vida.
O assunto veio à tona com as ameaças feitas à atriz Livia La Gatto, após a publicação de dois vídeos pela atriz satirizando os movimentos na internet que pregam a inferioridade feminina, movimento denominado de “masculinismo”, que enxerga a mulher como “objeto de descarte”.
O assunto dominou a imprensa e me levou a um outro lugar de reflexão, o lugar da curiosidade e da discussão sobre liberdade e limites na liberdade de expressão.
Vale lembrar que a liberdade de expressão significa que todo cidadão brasileiro tem o direito de expressar suas opiniões, ideias e pensamentos, seja através da fala, da escrita, da imprensa, da arte ou de qualquer outra forma, desde que não haja anonimato e que não sejam violados outros direitos fundamentais de terceiros, como o direito à intimidade, à honra e à imagem.
Ou seja, independente do que a Constituição diz, a gente sabe que não pode dizer tudo que pensa, mas parece que na internet muita gente esqueceu dessa regrinha básica de etiqueta social.
Então, eu me pergunto: por que as pessoas pensam que, na internet, pode-se dizer tudo que querem?
Por desinformação? Esse seria a resposta mais imediata, mas é muito vazia, superficial. Por exemplo, não é preciso saber que o Código Penal prevê a pena triplicada quando o crime é praticado na internet, para entender que é preciso ter cautela quando se fala algo a alguém ou de alguém.
Aí eu fiz o seguinte. Perguntei ao ChatGPT a seguinte questão: “por eu as pessoas pensam que podem dizer tudo que querem na internet?”
A resposta do robô de inteligência artificial foi incrivelmente elucidativa: 1) porque causa do anonimato, ou seja, as pessoas podem esconder sua identidade, o que dá a falsa sensação de proteção contra as consequências de sua fala; 2) a distância física faz com que as pessoas se sintam mais confortáveis para serem mais agressivas e diretas, sem temer as repercussões pessoais; 3) diante da distância e do anonimato, as consequências demoram mais tempo para surgirem na internet do que numa conversa tête-à-tête, em que a pessoa sai dali direto para a delegacia.
Na conclusão, o ChatGPT alerta: é bom lembrar que, internet, é preciso agir com responsabilidade.
Muito legal poder interagir com o computador, mas eu imagino que tem mais coisa por trás de tanta agressividade. E fui atrás.
O objetivo do Papo de Futuro é ir além das aparências, porque ninguém diz isso para você em casa, na escola ou no boteco. Essas conclusões partem de observações que pesquisadores fazem da internet como um sistema, um “fenômeno”, uma força de transformação social única e muito potente.
Eu colocaria aqui duas palavras chave que a gente precisa conhecer e entender para tomar a pílula vermelha, ou seja, a pílula da verdade como metáfora do filme Matrix muito utilizada no discurso do “masculinismo”.
Ou seja, as bolhas ideológicas, a monetização e as estratégias de poder e dominação.
A teoria do “filtro bolha” talvez seja a mais determinante para a gente sentir que pode falar à vontade sem sermos importunados. Essa teoria diz que os algoritmos que processam, determinar e editam a informação que vem nas redes sociais limitam você a conteúdos que correspondem às suas ideias e pontos de vista, ou seja, as pessoas se repetem e acabam agrupadas em nichos, ou “bolhas” de informações e opiniões que apenas reforçam a suas próprias visões, impedidas de terem um olhar diferenciado sobre o tema. O autor dessa teoria, Eli Pariser, alerta que a gente não faz ideia que estamos sendo induzidos, modulados e remodulados por plataformas que decidem o que vemos e o que as pessoas pensam e dizem sobre o mundo. Muito perigoso, pois estamos nas mãos dos editores da informação e, nesse “mundinho” de iguais, a gente solva o verbo, porque encontra tremenda empatia nessa comunicação. O sistema se retroalimenta na repetição e no reforça às ideias únicas, extremistas ou não, e isso cria “bolhas de verdade”. Sabemos que uma verdade é uma ideia muitas vezes repetida.
E qual é o impacto do discurso de ódio neste sistema que se retroalimenta? Ele alimenta esse sistema, ou é alimentado por ele?
O discurso de ódio dá ibope. E ibope, no mundo da comunicação, se traduz em cifrão, ou seja, rentabilidade, lucro, engajamento, e mais verba de publicidade. As plataformas digitais são grandes anunciantes. Mais do que isso, são grandes agências de publicidade. Mais além, elas são grandes editoras de conteúdo. E, para fechar o ciclo, essas plataformas digitais, em especial as redes sociais que usamos para a comunicação instantânea todos os dias, elas são grandes bibliotecas, elas sabem tudo sobre nós, e conseguem interpretar e conectar informações para escrutinar nossos desejos, pensamentos, padrões de comportamento e, sobretudo, padrões de consumo.
Ou seja, elas dominam toda a cadeia produtiva da economia digital, e enquanto a gente não entender que somos uma engrenagem nessa máquina capitalista global de informação e negócios bilionários, a gente vai continuar achando que tudo na internet é aleatório, casual e orgânico, o que não é real, pois os algoritmos funcionam com base nas recomendações de preferências, ou seja, elas enviam para você aquele conteúdo sensacionalista, ou seja, desinformação e discurso de ódio, como misoginia, porque isso gera reações emocionais nas pessoas, que passam a espalhar essa conteúdo como algo sensacional e muito importante, o que aumenta as visualizações e o engajamento, ou seja, traz anunciantes e mais receita para as plataformas.
A esse fenômeno, nós chamamos de monetização.
Não são apenas as plataformas que lucram. O influencer também lucra com o discurso de ódio!
O discurso de ódio, ou seja, falar o que dá na telha, é um grande negócio na internet, um jogo de ganha-ganha entre o influencer e a plataforma. Quem perde com isso? Basicamente, a sociedade perde muito, e a democracia entra em risco de colapsar. Isso porque a desinformação hoje é um dos maiores ataques à democracia.
E aí, a gente entra no terceiro ponto deste comentário. Como entender a internet se a gente não fala sobre poder e dominação? Quando a democracia está em risco, o Estado e suas entidades entram em colapso, e perdem poder político, poder de decisão e poder de polícia. E isso fortalece quem? As empresas e os grupos que querem agir ao arrepio da lei. E os discursos de ódio entram neste flanco. Eles não são por acaso. Eles fazem parte de narrativas de disputas de poder, no qual se inclui a relação homem mulher no contexto de uma sociedade machista.
Entrevistada no podcast “O Assunto”, a cientista política Bruna Camilo, da PUC de Minas Gerais, citou a cientista Joan Scott, que coloca a questão de gênero como parte das construções sociais que reforçam as relações de poder e dominação entre homens e mulheres.
Para entender a internet, a gente precisa entender que relações de gênero são fonte de poder, que comunicação é poder, e que discursos de ódio sobre gênero na internet são uma forma de gerar não apenas monetização, mas de exercer poder, alimentar o ego ou a sensação de superioridade sobre terceiros e estimular uma cultura que fortalece as condições e estruturais desiguais da sociedade.
Por isso, não são apenas a distância e o anonimato que levam as pessoas vomitar o que querem nas redes sociais. É o efeito manada, ou efeito bolha; o dinheiro, o poder e a sensação de Super-Homem ou Mulher-Maravilha que a lógica algorítmica traz para a rede.
Contra essa lógica, a gente pode silenciar e não divulgar o nome do influencer que citamos mais acima, para não dar mais engajamento para ele.
Contra essa lógica perversa, a gente pode dizer “não” à internet penico.
E para quem não sabe o que é penico, eu sugiro perguntar para o ChatGPT.
O comentário no Papo de Futuro vai ao ar originalmente pela Rádio Câmara, às terças-feiras, às 8h, em 96,9 FM Brasília.
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