Thaís Zschieschang*
A desigualdade de gênero na política é repartida em duas agendas centrais: a cultural e a legal, sendo os partidos políticos um dos principais mediadores de ambos, assim como da própria representatividade democrática. É importante reconhecer que os dois elementos citados se afetam mutuamente. Ou seja, mudanças legais podem ser influenciadas a partir de novas culturas e vice-versa.
O primeiro aspecto, o cultural, precede à organização política e às instituições democráticas postas, com divisão de papéis de gênero machistas, que confinam as mulheres aos ambientes domésticos, desacreditando-as em seu potencial de atuação social, laboral e em posições de liderança.
Na política atual, isso representa dificuldade de acesso aos cargos, com dois tipos de descrença. A primeira é que os espaços político-institucionais devem ser ocupados por – e, em regra, estão disponíveis para – uma minoria da população, que possui capital político anterior e tem um perfil branco, hétero e masculino. A outra é a descrença na política, que é criminalizada pelo histórico de ocupação e do formato de funcionamento das instituições. Somam-se às dificuldades de ingresso os desafios de permanecer em espaços de poder, com sua capacidade sempre questionada.
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A violência econômica é observada através dos repasses concentrados de recursos e dos atrasos no envio e recebimento de valores pelas candidaturas femininas, o que significa estabelecer condições desiguais na disputa eleitoral. Os partidos políticos definem seus repasses com base na leitura que fazem da força pública dos candidatos, o que na prática impõe uma barreira para a entrada de novas candidaturas e compromete a diversidade na ocupação de espaços políticos.
Este ano, mais uma vez existe uma proposta de emenda constitucional em trânsito no Congresso Nacional, a PEC 09/2023, com o intuito de não aplicar sanções aos partidos que não atenderam às cotas mínimas de sexo e raça para destinação de recursos nas eleições, em sua prestação de conta anual. A prestação de contas posterior as eleições também é um desafio anexo.
Para além da anistia defendida, a agenda inclui a disputa da porcentagem de cotas para candidaturas por critério de gênero. Alguns partidos querem diminuir as políticas afirmativas, julgando-as discriminatórias. Caberá ao Congresso Nacional o poder de decisão.
Foi nesse contexto que conversei com sete[1] das oito candidatas à presidência e à vice-presidência da República nas eleições de 2022, para saber como elas experimentaram a desigualdade de gênero durante a campanha. As oito candidatas, de um total de 24, são de seis diferentes estados, representam sete diferentes partidos e compuseram seis chapas, sendo que quatro concorreram à presidência. Em critérios de diversidade, três são negras, uma indígena, uma pessoa com deficiência.
Problemas enfrentados
Eis os problemas apontados pelas entrevistadas e alguns pontos que elas destacam.
Baixa visibilidade de programas e candidaturas menores: com menor espaço de tela, menos convites de mídia e acesso a recursos, muitas pessoas desconhecem a maior das candidaturas. A invisibilidade atinge ainda mais as candidaturas negras e femininas.
Agenda do voto útil: 2022 foi o ano da polarização, dos discursos de ódio e das notícias falsas, ficando evidentes a insuficiência dos formatos de debate e a qualidade dos conteúdos de mídia, que se colocaram por diversas vezes e linhas de forma reacionária e inflamada, invisibilizando outras chapas que não as duas principais de disputa.
Discussões de planos e desejos para o Brasil ficaram em segundo plano. As candidatas invocaram coerência programática e o direito de defender um programa, mas foram atacadas de diversas formas por não seguirem em aliança, desde o início do processo eleitoral, com alguma das duas chapas tidas como principais. Entre as candidatas, no segundo turno, duas resguardaram seu direito de não apoiar outras candidaturas, e sofreram ataques por isso.
Custo de imagem, descrédito e menos acesso a recursos atingem, ainda de que em proporções diferentes, todas as candidatas: descrédito, ataques identitários e ideológicos com base em ridicularizações, interrupções de fala e necessidade de prova constante de sua capacidade.
Os principais ataques sofridos, sobretudo em redes sociais, destacavam o “lugar” da mulher em serviços domésticos; desqualificavam os conhecimentos, a capacidade intelectual e de gestão das candidatas; davam mostras intensas de racismo, colorismo, capacitismo e etarismo; e envolviam acusações à escolha de candidatas por critérios de gênero, raça ou localidade, como cota de diversidade. O estranhamento social de ver mulheres concorrendo a cargos de liderança foi marcante.
Partido é chave central de apoio e seleção de candidaturas. Pelo critério personalista das eleições brasileiras para o Executivo, os candidatos são mais expostos do que os planos que estão entregando.
Promessas de suporte de partido não cumpridas em segurança, liberdade, autonomia e apoio para crescimento político aparecem como desafios centrais, atuando como desestímulo de inserção política de mulheres. São observados diferentes níveis de acolhimento partidário e preocupações com igualdades de candidaturas e diversidade representativa, sendo observado maior apoio partidário em partidos de esquerda, de menor capital político, com menos tempo de existência e menor acesso a recursos.
Recursos centralizados em candidaturas específicas e liberação tardia de fundo eleitoral foram observados nas candidaturas maiores; e o não recebimento de recursos e atuação exclusiva com investimentos próprios e de voluntários, nas menores, representando lógicas de reprodução de poder que fere a democracia durante seu principal marco, a eleição. Além dos voluntários de campanha, as redes de apoio familiar foram citadas como chave.
A decisão de denunciar violências sofridas, com medo de represálias às denúncias e constrangimento de ser descreditada ou silenciada, se alia à agenda de impunidade com anistias e ao machismo estrutural cultural, representando nova barreira a ser enfrentada para alcance da igualdade de gênero na política.
Como solucionar os problemas listados
Seguem as principais sugestões das mulheres entrevistadas.
Impulsionar, de forma contínua, a agenda de educação política e de participação, para maior qualidade de votos em momentos eleitorais e para abertura de espaços de diálogo, com conscientização, mobilização e construção coletiva para além das eleições, o que potencializa movimentos de pressão e controle popular. As ações educativas, de sensibilização e engajamento devem ter como temas transversais princípios de diversidade, em todas as suas formas, e de enfrentamento aos discursos de ódio e às notícias falsas.
Conscientizar e engajar partidos e seus dirigentes para uma real aplicação das políticas afirmativas postas, para que seu uso seja efetivo, e adotar transparência nos mecanismos de seleção de candidaturas e destinação de recursos. A descentralizando de tais decisões para além dos diretórios gerais é uma boa prática a ser defendida, considerando que ela não afeta a autonomia partidária. Tratar partidos como promotores da agenda de igualdade política representativa para que eles vão além das obrigatoriedades legais, e não as tenham como teto. As ações devem se somar ao reforço das sanções aplicadas aos partidos pelo descumprimento de cotas, sem anistias, e com a criação de mecanismos garantidores de sua aplicação.
Ampliação de mulheres e aliados em locais estratégicos de liderança em todos os poderes e esferas políticas, principalmente no âmbito federal, para criação de momento político favorável para pautar a agenda de forma representativa.
Promoção de reformas eleitorais a fim de garantir menos disparidade de tempo de tela e acesso a recursos para candidaturas menores e diversas, pondo fim às anistias, superando os 30% em vigor para chegar progressivamente a 50% e estabelecendo reserva de cadeiras no Parlamento. No momento, as políticas afirmativas tratam apenas de questões de gênero e raça. O enfrentamento do capacitismo e da LGBTQIA+fobia são pautas que podem e devem ser agregadas em avanços futuros, idealmente em curto prazo.
Reformular os espaços de debate eleitoral para que haja igualdade de visibilidade às pautas e temáticas apresentadas por todas as candidaturas.
O ponto final é o desejo de encerrar a agenda do desesperançar, carregada pela polarização, para abrir espaço para as novas cheganças prometidas pela ampliação da representatividade e da diversidade de candidaturas. Como indicam novas lideranças que aparecem no cenário político, é grande o potencial de crescimento para esse perfil de candidatura.
[1] Foram entrevistadas: Ana Paula Matos (PDT), Mara Gabrilli (PSDB), Raquel Tremembé (Kunã Yporã, PSTU), Samara Martins (UP), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (União Brasil), Vera Lúcia (PSTU). Por questões de agenda, Simone Tebet (MDB) não participou da coleta de dados.
* Cientista política, mestre e doutoranda em Psicologia Social, é cofundadora do Delibera Brasil, criadora do Manual Participativo e do Jogo do Desenvolvimento Sustentável e autora do livro Mulheres e Política no Brasil (Editora Dialética, 2022). Pesquisadora em inovação política na PUC-SP, é mentora na ABStartups, no BrazilLAB, no Sebrae e na Social.LAB.
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