Manuela Löwenthal *
Em um vídeo que possui mais de um milhão de visualizações no Instagram e no TikTok, a jovem pastora Vitória Souza de apenas 17 anos ensina aos seus fiéis sobre resiliência e determinação através de um copo de plástico todo amassado. “Ele está amassado, mas ainda cumpre sua função de copo. Ele está com cicatrizes, mas Jesus deixa cicatrizes em você para te lembrar que a dor não te matou, mas te fortaleceu”. A mensagem claramente traz a ideia de que o sofrimento é importante para o crescimento.
Em outro vídeo Vitória aparece com dois celulares iPhones, um mais atual e outro menos. Ela pede para uma pessoa escolher um dos dois iPhones, e ao ver que a pessoa escolheu o iPhone mais atual, ela explica que muitas pessoas não evoluem porque só querem as coisas prontas e não querem lutar pelas pequenas coisas antes de obter as maiores.
Com mais de 600 milhões de visualização no Youtube, a influencer cristã é um fenômeno na internet. Porém, apesar do sucesso, muitas são as críticas por parte de pastores que acusam Vitória de tratar pouco sobre teologia e não se aprofundar nos textos da bíblia, afirmam que Vitória faz “analogias fracas, antropocêntricas e desprovidas de fundamento bíblico”. Afirmam também que Vitória faz uso de métodos de coach que são superficiais e materialistas.
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A crise envolve choque geracional, enquanto Vitória mescla religião e redes sociais, pastores mais tradicionais questionam esta forma de manifestação da fé, porém a questão é: qual é o lugar da religião na sociedade? Seria mesmo a religião um fenômeno separado e desconexo das outras esferas sociais? Qual é o papel da religião para o mercado?
Em primeiro lugar, gostaria de trazer à reflexão o caráter histórico da religião. A religião, enquanto manifestação humana, acompanha o seu tempo, produz e reproduz a sociedade: ao mesmo tempo que ela reflete as práticas sociais, ela também cria novas formas de praticar a vida e manifestar a fé. Dito isto, não é estranho que uma pastora adolescente tenha o ímpeto de trazer para a igreja práticas que fazem parte do universo jovem, como por exemplo as ferramentas tecnológicas, a internet. A forma rápida de falar sobre temas complexos, a simplificação de teorias, o imediatismo, a performance, tudo isso compõe a linguagem contemporânea, e é assim que Vitória se comunica.
PublicidadeA segunda questão que quero levantar tem a ver mais com o conteúdo da mensagem trazida por Vitória, mas não em relação à teologia e sim sobre como a pastora incorpora em seu discurso elementos e valores próprios de uma sociedade neoliberal. Nesse sentido, quero mostrar como esta vertente da igreja evangélica se aproxima, produz e fortalece uma lógica de mercado e um modelo de política mercadológico e empresarial.
Quando Vitória utiliza dois iPhones para falar sobre valor, ela está explorando os símbolos e a estética de uma sociedade que tem como maior marca o consumismo, e consequentemente o individualismo. Ambos elementos essenciais para a existência da Teologia da Prosperidade e para a implementação de políticas neoliberais.
Muitos autores afirmam que a Teologia da Prosperidade é a doutrina ideal para a ascensão do neoliberalismo. No Brasil, o surgimento das neopentecostais e da Teologia da Prosperidade nos anos 90 coincide exatamente com a implementação do “mercado livre” pelo governo Collor. Algumas concepções como “produtivismo” e “imediatismo” adentram no imaginário da sociedade brasileira neste período.
Assim como ocorre com os coachs, discursos ligados à Teologia da Prosperidade como os de Vitória atuam como um incentivo de autoajuda que proporcionam ao fiel uma postura racional e uma conduta que comporta uma ética de trabalho própria do neoliberalismo, estabelecendo um paralelo entre a doutrina e a dimensão prática da vida dos frequentadores.
Com termos empresariais, linguagem adaptada ao mercado, estratégias de marketing e propaganda, esses discursos transmitem nitidamente uma ideia de sucesso material e prometem que através do esforço individual a ascensão social e o poder material irão prosperar. Ocultam os problemas sociais de ordem estrutural, retiram do Governo as responsabilidades, esvaziam o sentido político das desigualdades e fragmentam as lutas sociais. Fazem o trabalhador acreditar que o problema da miséria é individual, e não social.
Vitória ainda é uma aprendiz de pastora que recebe críticas de pastores mais experientes, porém o que Vitória representa vai muito além de pouco conhecimento bíblico. Vitória representa a perigosa junção entre religião e sistema político, doutrina e ideologia, neoliberalismo e neopentecostalismo.
Observação: os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e a análise dos seus autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Manuela Löwenthal é doutoranda em Ciências Sociais pela Unifesp, pesquisa temas vinculados à Religião e Política no Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (2012), onde também obteve o título de mestre. É pesquisadora do projeto Temático “Religião, Direito e Secularismo: A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, financiado pela Fapesp. Atua também como professora de Sociologia na Rede Estadual Paulista.
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