Flávio Dino foi o nome escolhido pelo presidente Lula para atuar como interventor na segurança pública do Distrito Federal após a ocupação das sedes dos três poderes em Brasília, um ano atrás. Dino chegou a receber uma minuta do decreto que o nomeava para a função, o que só não se concretizou porque ele mesmo concluiu que isso o levaria a perder o mandato de senador, do qual estava licenciado para desempenhar a função de ministro da Justiça e da Segurança Pública. Foi assim que a escolha terminou recaindo em seu secretário executivo, Ricardo Cappelli.
Quem relata o fato é o próprio Cappelli, que em entrevista ao Congresso em Foco forneceu vários detalhes sobre o 8 de janeiro, na perspectiva de quem viveu intensamente aquele episódio e seus desdobramentos. Primeiro, como interventor, após a flagrante omissão das autoridades do Distrito Federal na repressão aos atos golpistas. Depois, ao atuar durante 15 dias como ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Na sua visão, a tentativa de golpe poderia sim ter dado certo não fossem as decisões rápidas e firmes adotadas pelo governo Lula e a atuação de algumas figuras-chave, como o presidente da República, o próprio Dino e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes.
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Ressaltando a força popular do bolsonarismo, o atual ministro interino da Justiça (Dino, que em fevereiro assumirá o cargo de ministro do STF, está de férias) destacou ainda o esforço feito por Bolsonaro para cooptar as Forças Armadas para o seu projeto golpista mediante a entrega de cargos e de elevados salários. Acrescenta, porém: “O alto comando jamais daria um golpe ou apoiaria um golpe para voltar com Bolsonaro. General não dá golpe para entronizar capitão. General vai dar golpe para eles, os generais, assumirem o poder, e não para botar no poder um capitão mequetrefe”.
Jornalista e gestor público, Cappelli — que em 11 de fevereiro completará 52 anos — foi um dos principais assessores de Dino durante os seus dois mandatos como governador do Maranhão. Antes, teve uma longa militância no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), iniciada quando atuou no movimento estudantil (chegou a presidir a União Nacional dos Estudantes, UNE, de 1997 a 1999). Afastou-se da agremiação em 2021, acompanhando Dino na mudança para o PSB.
Veja os principais trechos da entrevista de Cappelli.
Até que ponto a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] ajudou? Seja com alertas, antes do 8 de janeiro, seja depois acompanhando, ajudando a identificar responsáveis, trazendo informações úteis para a compreensão desse universo aí da extrema direita radicalizada.
PublicidadeCom a gente aqui, não tem muita interação. Não sei se a PF nas investigações está interagindo com eles. Com a gente aqui, a relação é muito pequena.
E foi pequena o tempo todo?
Foi. Porque a Abin adotou uma postura reativa no sentido de se defender sobre uma eventual falha de inteligência, rebatendo a ideia de que não teria alertado corretamente o governo.
E aí vem a história desse grupo de WhatsApp que a Abin mantinha com outros órgãos públicos [no qual alertou-se sobre o “risco de ações violentas contra edifícios públicos e autoridades”].
Precário, né?
Não tinha ninguém da gestão atual no grupo?
Não. Quer dizer, tinha gente do Ministério [da Justiça], mas quem ainda era egresso. Cinco dias úteis de governo, o secretário nacional de Justiça [ao qual cabe promover a articulação com outros entes governamentais] não estava nem nomeado ainda.
Não teve comunicação da Abin ou de qualquer outro órgão de inteligência, diretamente ao ministério?
Não.
Nada?
Nada. O que a gente tem é o comunicado do Andrei [Rodrigues, diretor-geral da Polícia Federal]. Como já saiu na imprensa, ele envia um ofício ao ministro em 7 de janeiro [“risco de ações violentas contra edifícios públicos e autoridades”. E o ministro, imediatamente, repassa ao Ibaneis.
E pede o bloqueio [da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes].
É isso. Tivemos, sim, o apoio do ministro Zé Múcio [da Defesa], que teve e tem sempre uma postura equilibrada. Mas isso depois que invadiram. Antes, o aviso que houve foi da Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do DF para o Anderson [Torres], que era
o secretário. Ele é entregue no gabinete do Anderson às 17 horas do dia 6. É um relatório de inteligência à Secretaria. Ele está no meu relatório como anexo. Como interventor, fiz um relatório bastante técnico. Muito factual, objetivo. Com números, fotos, documentos.
Qual foi o personagem central no enfrentamento da crise?
No governo, além obviamente do presidente Lula, o personagem central sempre foi o Flávio [Dino, ministro da Justiça]. Porque, assim que o fato acontece, quem acompanhou tudo foi ele. Quem tomou as providências todas com o presidente foi ele. Falava direto com Lula, não é? É, direto. O interventor seria o Flávio, né? Aliás, no decreto original, que não foi publicado, o interventor seria ele.
Tem esse decreto?
Não, acho que não. Eu acho que ele chegou a ser enviado para o WhatsApp do Flávio porque o interventor seria ele. Foi um negócio ali de três minutos. O Flávio recebeu e ele fala: “Presidente, espera aí que eu vou ver a Constituição, acho que não posso. Eu já fui diplomado senador. Senador não pode”.
E não podia.
Não podia. Aí ele falou: “Se eu for nomeado, eu posso perder meu mandato de senador. Eles podem questionar meu mandato no Senado”. Aí o Lula falou: “Pô, então arruma alguém aí, precisa botar alguém agora, imediatamente”. Mas o interventor seria ele, o interventor original era ele. Eu estava tranquilo. Minha mulher chegando. Naquele dia, de viagem, com a mudança, de São Luís, às 8 da noite, no aeroporto… Ela, meu filho, com mala, não sei o quê… Eu tinha alugado um Airbnb aqui. Eu tava no hotel e tava procurando apartamento, ainda não tinha achado, aí aluguei um Airbnb, ela vinha. Ela veio pra me ajudar a procurar apartamento aqui, pra mudança poder vir depois, e tal. Ela chegou naquele dia, no dia 8. Ela chegou tipo 8, 8 e pouco. Aí o que aconteceu? Quando eu virei interventor, falei “já era”. Liguei pra um amigo, eu falei: “Cara, busca ela, com o Henrique, pelo amor de Deus, lá na aeroporto, leva eles para esse endereço, era um Airbnb desses que não tem chave, que é aquela senha na porta, né? Falei, ó, a senha é essa. Abre, bota ela lá, e aí avisa o que tá acontecendo, avisa que eu não sei a hora que eu vou chegar e não sei se chego. Aí chegou em casa de madrugada, realmente. Eu cheguei era 3 e pouco da manhã em casa e tinha que estar 15 pras 6, 6 horas no máximo, na entrada do Setor Militar, porque 6 e meia era o acerto para desmontar o acampamento [em frente ao quartel-general do Exército]. Então eu cheguei 3 e pouco da manhã em casa, tomei um banho, comi alguma coisa, ela tava acordada me esperando, deitei 4 e pouquinho para tentar dormir pelo menos uma hora. Não dorme, né? Dormi nada. Você frita, né? Você fica fritando, a adrenalina lá no teto. Você fica fritando de um lado pro outro, eu não dormi naquele dia. Fiquei acordado.
Da sua experiência com esse episódio tão marcante, qual foi a grande decepção e qual foi a grande lição?
Não sei se tem decepção. A lição é que a história do Brasil… as pessoas, claro, depois que a história acontece, as pessoas passam a ter uma visão meio planejada e orquestrada da história, mas isso não existe. Não é assim que a história é construída. Quando o general Mourão Filho desceu de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março para 1º de abril, em 64, ele não tinha um plano do que ia acontecer. Ele desceu para ver o que ia dar. E a história foi ali se construindo. Quando Getúlio sai lá do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro, em 30, ele fez uma aposta na construção de um caminho. Se em 64 tivesse havido resistência na chegada ao Rio, talvez a história fosse outra. Então, acho que a principal lição é que você pode sempre intervir no curso da história. E o dia 8 foi muito importante por causa disso. Porque foram tomadas decisões certas, atitudes corretas que impediram que a gente tivesse um desfecho de retrocesso no país. Acho que a decisão da intervenção civil na segurança pública foi correta. Foi correta a decisão de endurecer, quer dizer, de fazer cumprir a lei… prender, desmontar acampamentos no Brasil inteiro, dar um certo basta. “Agora acabou, basta; daqui pra frente, não tem mais isso”. Acho que a história mostrou que foi correto. A lição que fica é essa, né? Eu acho que as expectativas deles eram que os eventos aqui gerassem desdobramentos no resto no país. Você imagina se você tem desdobramentos no resto do país, se você tem eventualmente uma revolta, um levante de polícias! O Brasil tem hoje, em CACs [colecionadores, atiradores desportivos e caçadores autorizados a usar armas de fogo], quase quatro vezes o número de homens que nós temos nas Forças Armadas. Temos 226 mil homens nas Forças Armadas, você tem mais de 800 mil CACs. É um exército armado no Brasil. Foi criado um cenário, uma cultura, foi alimentado um ódio, uma cultura armamentista, uma divisão no Brasil, que aquilo ali
poderia ter sido estopim de algo de desfecho imprevisível. Então acho que as atitudes que foram tomadas, rápidas, enérgicas, elas impediram que o desfecho fosse outro.
Você citou duas decisões fundamentais, a decisão pela intervenção civil e a outra, do desmonte dos acampamentos. Mas teve a atuação do Alexandre também, né?
Claro. Papel decisivo. O Alexandre de Moraes foi, é e tem sido uma figura central na defesa da democracia e das instituições. Então ele decide pelo afastamento do governador naquele momento, que acho que também foi a medida correta, considerando as circunstâncias, até mesmo para que pudesse ficar clara a situação do governador. Eu acho que foram atitudes que se somaram e garantiram um desfecho que foi de
fortalecimento da democracia e das instituições democráticas. Agora, o desfecho poderia ter sido outro, né? Se o governo demora a tomar uma atitude, o que poderia ter acontecido? Porque tivemos um golpe, né? As sedes dos três poderes tomadas por algumas horas! Falando tecnicamente, friamente, nós tivemos um golpe. O que é possível dizer em relação à participação dos generais que foram protagonistas da era Bolsonaro, como Heleno e Braga Neto? Há digitais desses caras? Eu não sei se a PF eventualmente encontrou algo, mas essas conspirações não passam recibo, né? Conspiração não passa recibo. Agora, tem que perguntar a eles, né? Depois das eleições, eles iam para esses acampamentos, encontravam com esses militantesextremistas e aí ficavam dizendo: “Não percam a esperança, vem coisa boa”. O que eles queriam dizer com isso? Eles têm que vir a público dizer. Essa minuta encontrada na casa do Anderson, foi construída aonde? Por quem? Dizem que houve reuniões aí no Palácio do Planalto para debater. Houve mesmo? Não houve? Eu ouço até de jornalistas que o [Almir] Garnier, que era o então comandante da Marinha, se recusou a passar o posto, né? Recusou-se a fazer a transmissão de cargo. É um negócio que acho que não tem precedentes na história. E que ele dizia abertamente que o Lula não subiria a rampa. Ele, comandante da Marinha, dizia abertamente! Os comandantes militares se recusaram a se reunir com o presidente eleito antes da posse.
Tem registro disso do almirante Garnier dizendo isso?
Eu não tenho. Mas todo mundo diz que ele falava para quem quisesse ouvir.
E estavam nos acampamentos a filha do [ex-comandante do Exército, general] Villas Boas, a esposa do Mauro Cid, entre outras pessoas muito ligadas ao bolsonarismo e às Forças Armadas, né?
O acampamento é uma aberração, né, Sylvio? A gente naturalizou um negócio que é uma aberração. Não tem precedente na história da República você ter acampamento em frente ao quartel-general do Exército brasileiro e em frente dos quartéis-generais pelo país pedindo golpe de Estado. Isso é surreal, é uma aberração! Pede para um jornalista aí, agora, montar um iglu em frente ao QG do Exército, botar um colchãozinho dentro do iglu e deitar lá e vê quanto tempo ele vai ficar ali. Ele vai ser arrancado dali em cinco minutos. Como é que os caras montam uma cidade em frente ao quartel-general do Exército, com faixa defendendo golpe de Estado, fechamento do STF, ditadura?! Tinha gerador, tinha cozinha industrial, banheiro químico, tinha tudo. Era uma minicidade que eles montaram!
E por que o Exército foi tão tolerante?
Eu acho que tem que perguntar ao Exército.
As suas suspeitas. O que pode ter acontecido?
Olha, eu acho que existia claramente simpatia de setores das Forças Armadas a essas ideias estapafúrdias, obscurantistas. Além da simpatia, é bom que se diga, tinha muita força material embutida nessa simpatia, que é o quê? Muito dinheiro, muito cargo, muita gente empregada, muito militar empregado, muito parente de militar empregado, muito… Então tinha muita gente também ganhando muito dinheiro. O que que o Bolsonaro fez? A tentativa de cooptação dele das Forças Amadas não era só pela conversa fiada, não era só saliva. Tinha muita grana envolvida. Porque ele botava os militares em cargos civis, botava a família do cara, ia jogando na tentativa de fazer a cooptação da força, usando o Estado para fazer a cooptação das Forças Armadas…
Era dinheiro no bolso, né?
Dinheiro no bolso, salário. Claro que isso também tem impacto. Vários ministros militares, militares diretores de empresas. Você pega a Agência Nacional de Proteção de Dados, a ANPD, dos cinco conselheiros, três são militares que foram da Aman [Academia Militar das Agulhas Negras, escola superior do Exército com sede em Resende, RJ]. Você tinha militar com cargo, com mandato, com dinheiro, aí bota o cara, daqui a pouco bota a mulher dele ali, depois bota o filho ali e você vai fazendo uma cooptação por dentro, entendeu?
Chegou a ver um levantamento disso? Desse salário dos militares.
Vi por alto e eram números altos, mas não investiguei isso lá no GSI. Fiquei 15 dias, eu tinha uma missão muito específica.
Mas, além dessas vantagens econômicas, não havia também simpatia ao golpe nas Forças Armadas?
Não é uma coisa homogênea, mas, se não houvesse simpatia, esses acampamentos não teriam sido montados. Ali é área de segurança nacional, não existe montar ali acampamento como aquele. Não existe. Agora, não eram ideias hegemônicas. Eles não conseguiram conquistar maioria no alto comando das Forças Armadas, por isso não houve um golpe. A maioria não aderiu a aquela aventura proposta.
A maioria do Alto Comando do Exército?
Sim. Não aderiu à aventura. Veja você aquele episódio do Fernando Azevedo e Silva, em que ele entrega o cargo [de ministro da Defesa]. O Bolsonaro chamou ele, perguntou a ele se esses caças Gripen já tinham chegado e se tinha algum operacional. Aí ele falou: “Já chegaram, presidente, e tem dois operacionais”. E ele falou: “Quero que dê rasante para explodir as vidraças do STF”. Dar rasante para explodir vidraças do STF! Ele falou: “Não vou fazer isso”. Aí ele virou para o Fernando Azevedo e Silva e falou: “Tem outra coisa. Eu vou decretar GLO nos estados em que os governadores estão decretando medidas de afastamento, e quero que você entre com os generais para assumir os governos estaduais”. Aí ele falou: “Presidente, o STF já definiu as atribuições dos governadores sobre a pandemia, não posso fazer isso”. No dia seguinte ele chamou Fernando Azevedo e Silva e fala: “General, preciso do seu cargo”. Aí o Azevedo e Silva fala para ele: “O cargo você vai levar, mas não vai arrastar as Forças Armadas para essa aventura que está querendo”. E vai para cima dele. Eu não sei se ele confirma isso, mas foi isso que aconteceu. Então você vê que não era hegemônica essa maluquice. O Fernando Azevedo e Silva, um general quatro estrelas respeitado, não aceitou, reagiu. Acho que o alto comando, na minha visão, jamais daria um golpe ou apoiaria um golpe para voltar com Bolsonaro. General não dá golpe para entronizar a capitão. General vai dar golpe para eles, os generais, assumirem o poder, e não para botar no poder um capitão mequetrefe, péssimo militar, entendeu?
No Alto Comando do Exército, quais eram as figuras, digamos assim, mais comprometidas com a ordem constitucional?
Eu não tenho domínio assim para dizer, conheço um ou outro. Eu não conheço muito eles. Eu conheci o Tomás [Paiva, atual comandante do Exército], conheço o [ex-comandante do Exército Júlio César] Arruda… O general Arruda me disse na noite do dia 8 coisas que ele não podia me dizer.
Por exemplo?
Quando eu argumentei que tinha que prender todo mundo, desmontar acampamento, eu perguntei a ele: “O senhor não concorda?”. Ele falou “Não. O senhor tem que entender que o país está dividido”. Isso não é afirmação de um general. Ele não tem que dar opinião política, não tem que tomar decisão a partir de uma leitura política dele. Ele está ali para cumprir a Constituição e ponto. Não cabe a ele dar palpite sobre a conjuntura nacional.
Que vínculos há entre Bolsonaro e o 8 de janeiro?
Factualmente, é muito díficil identificar vínculos. Conspiração não passa recibo. Anderson Torres era unha e carne com ele. É difícil você imaginar uma ação dessa sem ter no mínimo a conivência do Bolsonaro.
Ele sempre teve esse projeto, né? Vide a manifestação de 15 de março de 2020 e as outras manifestações golpistas. Antes de fechar o acordo com o Centrão, ia pra rua propor o fechamento de Congresso. Defesa da ditadura é a pauta dele eterna, né?
É. A pauta dele eterna. A dele e dessa turma extremista dele, contra o STF, xingando o STF, né? Agora, Sylvio: isso é uma crise global, né? Não é uma crise brasileira. O mundo ocidental vive uma crise institucional e política que descambou para o enfrentamento entre os poderes. É só a gente olhar ali na Esplanada agora e contar quantos carros chineses, coreanos e japoneses estão passando. O capital está girando para a Ásia. A
minha hipótese é que temos uma crise assentada em dois pilares. Primeiro, estamos perdendo base material objetiva para a Ásia. Não é só carro. Sabe quantas encomendas, dessas de até US$ 50, estão chegando por dia em Guarulhos dessas empresas tipo Shein e Shopee? Um milhão por dia. Todo mundo está comprando de lá, e comprando vestido, sapato, tudo. A Europa não está conseguindo sustentar o padrão de vida que ela conquistou. Então você vê o desemprego estrutural crescer na Europa. Os Estados Unidos, muito espertamente, agora fomentam a guerra porque quem está ganhando com a guerra é a indústria bélica norte-americana, que está mandando armas. Vivemos a maior concentração de renda e de riqueza da história da humanidade, segundo o economista [francês Thomas] Piketty. Então você tem uma exclusão estrutural gigantesca. Esse cenário é objetivo. Para o povo, é o seguinte: “Beleza, eu acredito na democracia desde que a minha vida melhore”. Democracia, para a maioria do povo, faz sentido quando significa dinheiro no bolso, prosperidade. A pessoa pensa: “Se a
democracia não está me trazendo prosperidade, bota qualquer outra coisa no lugar que me dê prosperidade”. Não existe fidelidade a uma democracia abstrata para uma grande massa. Metade da população da cidade do Rio está sob as ordens ou da milícia ou do tráfico. Para esse cara, a democracia já não existe mais há muito tempo. E aí tem o outro lado, o segundo pilar. O que a extrema direita vende? Uma viagem de volta, impossível, a um passado seguro e próspero que nunca existiu. Ela vende uma fake news. Isso é um clássico da extrema direita na história mundial. A economia alemã estava se recuperando com o capital norte-americano, no final da década de 20 e início da de 30, até que vem a quebra da Bolsa de Nova Iorque, ela se arrebenta e o que emerge? Hitler e o nazismo. Então esse fenômeno da extrema direita está muito vinculado à desesperança. É um momento de depressão coletiva, de falta de esperança no futuro.
Fora o fato de termos novas gerações que não viveram a ditadura militar e que embarcam na visão romantizada do que foi o país de 1964 a 1985, né?
Mas, veja, o mais grave é que entre 2011 e 2020 o Brasil teve uma taxa média de crescimento anual de -0,1%. Gente, isso é um desastre! Nós somos da geração que dizia que a década de 80 era a década perdida. De 11 a 20 foi muito pior. Você pode dizer que o impeachment foi golpe, que teve a Lava Jato e não sei mais o quê, mas, objetivamente, tivemos dez anos de taxa de crescimento desastrosa. Um desastre civilizatório e
humanitário. E daí emerge, claro, uma extrema direita que tem que encontrar um culpado. Para o nazismo, eram os judeus. Aqui, a Lava Jato ajudou a apontar os políticos e a corrupção dos políticos como culpados. Esse é o maior desafio nosso. As pessoas me perguntam: “Cappelli, o que estabiliza a democracia? São as leis que vocês estão propondo? É a ação da investigação, da justiça, da polícia?” Eu falo: “Não é nada disso. O que estabiliza a democracia é a prosperidade. Sem prosperidade, esquece”. Que é o que a gente está vivendo, veja a Argentina aí agora. Veja a América Latina. Peru insolvente, numa crise institucional que não tem fim, o Chile, onde ganhou a esquerda mas as pessoas estão andando na rua com cartaz do [ex-ditador Augusto] Pinochet.
O que ainda não foi contado do 8 de janeiro? Participação dos militares? A questão
do financiamento?
Não tem muito elemento para falar isso. Pelo menos eu não tenho. Só se a PF tiver lá nos inquéritos. Tinha muita gente da reserva, né? O financiamento, pelo que eu vi assim, era mais um financiamento horizontal, descentralizado, envolvendo por exemplo grandes comerciantes locais Mas ele não é um grande empresário nacional; é grande na cidade dele. Precisamos entender o seguinte: o bolsonarismo é um fenômeno de massa. Com base popular, real, material. É gente que acredita, que milita. Tem militante. Tem gente que bota dinheiro. É um fenômeno real. Nós vencemos a eleição por 2 milhões de votos, com o Lula, que é a maior liderança popular da história do Brasil. Se o Bolsonaro tivesse tido uma postura mais equilibrada na pandemia, nós não estaríamos conversando aqui hoje. Ele teria sido reeleito. Ele perdeu a eleição na pandemia. Mesmo com ele debochando de morto, tendo feito as maiores barbaridades, quase ganha a eleição. Então, voltando à questão do financiamento, não tem uma grande conspiração internacional. Foi financiamento horizontal. O cara do comércio lá chega e diz: “Eu pago
um ônibus” [para levar militantes a Brasília]. O outro fala: “Eu também pago um ônibus”. É um fenômeno real, que tem raiz, que tem base e militância. É um negócio com aspectos totalmente fora da casinha, pré-iluministas, obscurantistas, mas há militantes que acreditam mesmo naquilo. O desafio segue sendo econômico. Se a economia prospera, isso tudo vira pó, essa maluquice vira pó.
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