Almir Megali Neto e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira *
Tramita perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 854 (ADPF n. 854). Proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), a ação pretende declarar a inconstitucionalidade do modelo de distribuição de receitas federais através das emendas do relator-geral da Lei de Orçamentária Anual, popularmente conhecida como “orçamento secreto”.
O partido sustenta haver um esquema montado pelo governo federal visando aumentar sua base política de apoio junto ao Congresso Nacional. O esquema se daria mediante atuação conjunta do relator-geral do orçamento federal e do presidente da República. O primeiro introduziria despesas públicas na Lei Orçamentária Anual, por meio de emendas parlamentares, as chamadas emendas do relator. Com esse espaço orçamentário, o segundo teria um instrumento político-institucional que permitiria cooptar apoio parlamentar no Congresso Nacional. Segundo o Psol, cada parlamentar que aderisse à base governista no Congresso Nacional receberia uma fração das despesas alocadas no orçamento podendo destiná-las a suas bases eleitorais, bastando indicar as entidades ou órgãos beneficiários dessas receitas.
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De acordo com o partido, diante da ausência de previsão constitucional autorizadora, essa prática teria como pressuposto o apoio parlamentar à base governista no Congresso Nacional, razão pela qual seria incompatível com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, bem como com os preceitos fundamentais regentes da execução do orçamento público e das finanças públicas, por configurar uma prática unilateral, pessoal, arbitrária e sem transparência de recursos públicos.
A ação foi distribuída à relatoria da ministra Rosa Weber e ainda não teve o seu mérito apreciado pelo STF. Até o momento, houve apenas o deferimento em parte de medida cautelar para determinar que o Congresso Nacional tomasse providências para dar publicidade às informações relativas à distribuição de recursos orçamentários oriundos das emendas do relator-geral do orçamento. Entre idas e vindas do processo, chama a atenção o posicionamento adotado pela Procuradoria-Geral da República.
Nas duas oportunidades em que se manifestou, o procurador-geral da República, Augusto Aras, classificou a execução dos recursos orçamentários oriundos das emendas do relator-geral do orçamento como matéria interna corporis do Congresso Nacional, pois o próprio texto constitucional determina que as emendas ao projeto de lei orçamentária anual sejam feitas na forma regimental. Logo, conclui que a questão não passaria de discordância política, sem qualquer fundamento constitucional, a ser resolvida pelo próprio Poder Legislativo.
Mais uma vez, o argumento das matérias interna corporis foi invocado como artifício supostamente capaz de impedir o controle dos atos praticados no interior do Congresso Nacional. Por meio do socorro a esse argumento, pretende-se imunizar a distribuição de recursos públicos federais com base nas emendas do relator do orçamento do constrangimento imposto pelas normas constitucionais, como se fosse possível criar em uma república que se constitui na forma de um Estado Democrático de Direito áreas livres da incidência da própria Constituição.
Por meio desse artifício, transforma-se a destinação de recursos públicos federais em assunto privado de deputados e senadores, não mais a uma questão que diga respeito à cidadania em geral. O resultado é a completa ausência de parâmetros normativos para o controle da distribuição de recursos públicos federais. Ao final, abre espaço para o exercício cada vez mais arbitrário do poder político, posto que livre de qualquer constrangimento normativo-constitucional e da fiscalização das instâncias de controle e dos cidadãos.
Contudo, uma construção em tal sentido é incompatível com uma constituição como a Constituição de 1988. O fato de a Constituição determinar que as emendas ao orçamento anual sejam feitas na forma regimental não faz com que o restante do texto constitucional tenha sua eficácia suspensa e não incida sobre as resoluções do Congresso Nacional. Dessa forma, não é possível imunizar o procedimento legislativo pertinente às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual das normas constitucionais.
Esse posicionamento somente reforça a pretensão de transformar o orçamento público federal em uma questão privada, de interesse meramente particular dos congressistas da ocasião, que, em tenebrosas transações, poderiam ser livremente cooptados pelo presidente da República, recebendo, em contrapartida, generosas fatias do orçamento sem qualquer tipo de controle e fiscalização. A esse fim serviu o uso das questões interna corporis, razão pela qual, mais do que nunca, se faz necessária a sua superação.
* Almir Megali Neto é doutorando e mestre em Direito pela UFMG. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Já Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre e doutor em Direito pela UFMG. Pós-doutorado com bolsa da CAPES em Teoria do Direito (Universidade de Roma III). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D).
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