Estamos em pleno período eleitoral. A bem da verdade, em um dos mais acalorados períodos eleitorais de nossa história. Neste momento de segundo turno e de elevada polarização da sociedade entre dois candidatos à Presidência da República, um tópico que tem sido discutido como fator relevante para a possível vitória de um ou do outro candidato é a abstenção eleitoral. Uma maior abstenção tenderia a favorecer um dos lados da disputa, uma abstenção menor seria benéfica para o outro candidato.
No primeiro turno das atuais eleições, a abstenção foi de 20,91%, ligeiramente acima do índice verificado em 2018, de 20,3%. Em compensação, o número de votos nulos ou em branco (4,2%) foi menos da metade do verificado em 2018 (8,8%). Em número de eleitores, estamos falando de 32,7 milhões de cidadãos aptos a votar que não compareceram às urnas, não obstante o voto seja obrigatório no Brasil para os eleitores alfabetizados dos 18 aos 70 anos de idade. Do total de eleitores que não compareceram às urnas, 23,3 milhões estão entre aqueles para quem o voto é obrigatório, nos termos do artigo 14 da Constituição Federal. Esse número representa 16,68% do eleitorado que tem obrigação de votar, ou seja, um em cada seis eleitores obrigados a votar não compareceu ao pleito.
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Parte dessa abstenção se explica por motivos variados, como ausência do domicílio eleitoral por viagens ou problemas de saúde, mas outra parte decorre simplesmente da livre vontade do eleitor, do seu desejo de não participar das eleições, do seu desinteresse pela luta por cargos de governo e de representação, o que levanta uma questão política importante: esse eleitor está fundamentalmente errado ou está apenas exercitando um direito natural da participar ou não desse momento da vida democrática? Colocada a questão em outra perspectiva, o voto obrigatório é compatível com a própria essência da democracia ou se apresenta como a negação de um de seus pilares, que é a liberdade de escolha, incluída a liberdade de não escolher?
É curioso que tenhamos consagrado na Constituição Federal tantas liberdades, como a liberdade associativa, de expressão, de culto; o trabalhador pode ou não se sindicalizar, mas o cidadão é obrigado a votar.
É inegável que há um traço autoritário no voto obrigatório. O fato de o Estado determinar que um cidadão seja obrigado a participar das escolhas dos governantes e representantes no parlamento vai contra a própria história de conquista do direito de participação política. As lutas democráticas visaram a conferir a cada vez mais pessoas o direito de participar da vida política. Assim caminhamos do voto censitário para o voto universal, as mulheres conquistaram o direito ao voto, os maiores de 16 anos e menores de 18 adquiriram o direito ao voto. Parece fora de lugar, portanto, a ideia de que o cidadão precise ser compelido a exercitar algo que é fundamentalmente um direito. Não faz sentido imaginar que o Estado necessite tratar o eleitor como um ser infantil, hipossuficiente, que precisa ser obrigado a escolher o futuro político da Nação.
Os defensores do voto obrigatório sustentam que o cidadão pouco instruído, pouco consciente dos seus direitos e deveres, pouco politizado, carece dessa obrigação não só para que exerça seu direito, mas também aprenda com o processo político, se eduque por meio da participação nas eleições. Assim, quando a sociedade estiver mais madura, mais politizada, poderá ser adotado o voto facultativo. Dizem esses defensores que apenas setores da elite econômica e cultural participariam das eleições se o voto fosse facultativo e que os excluídos seriam, desse modo, ainda mais excluídos.
PublicidadeO argumento é em si mesmo profundamente ilógico e incoerente. Ora, presume-se que parte do eleitorado não tem capacidade de discernir adequadamente se deve ou não participar da vida política na condição de eleitor. Esse eleitor precisa ser tutelado, obrigado a votar, mas, por passe de mágica, imagina-se que esse mesmo eleitor presumidamente incapaz, alienado, tem plena capacidade de discernir quem deve ser eleito para governar e para compor o parlamento.
Para completar a incoerência, o eleitor pode votar em branco ou nulo, que no caso da urna eletrônica, não se dá por mero erro, mas por opção, já que ele precisa confirmar o voto nulo ou em branco. Há até um botão específico para o voto em branco. Vale dizer, o eleitor que não quer votar em ninguém não pode apenas ficar em casa. Ele tem de se deslocar, talvez gastar dinheiro com passagem de ônibus ou com combustível e entrar em um fila para finalmente exercitar o direito de realizar seu legítimo desejo que é o de não votar em ninguém! O voto nulo ou em branco são um não-voto. Se o voto é obrigatório, eles não deveriam ser admitidos. Ainda bem que são admitidos, o voto é que não deveria ser obrigatório!
Assim como o silêncio é uma resposta, muitas vezes eloquente, a abstenção ou o voto em branco ou nulo também são uma forma legítima de expressão da vontade do eleitor. Se o eleitor não quer votar, é porque não se sente representado, incluído, contemplado, não se percebe como relevante, não se considera visto e considerado pela classe política. Onde o voto é facultativo, os partidos políticos precisam se esforçar bem mais para convencer o eleitor a votar, o que passa por estar mais atentos às necessidades dos eleitores, às suas demandas e aspirações.
A maior parte dos países desenvolvidos não têm e nunca teve voto obrigatório. Não se trata, pois, de um estágio necessário ao desenvolvimento político de nenhum país. Ao contrário, o voto obrigatório bem pode contribuir para o atraso do desenvolvimento na medida em que desobriga os partidos do trabalho de cativar os eleitores por todo o tempo e não apenas no período das eleições, a fim de que se sintam motivados a comparecer. Essa necessidade de cativar o eleitorado poderia levar os partidos políticos a serem mais abertos, transparentes e representativos da sociedade.
A legitimidade das eleições, baseada no percentual de participação dos eleitores, precisa ser real, verdadeira, não pode ser criada artificialmente. O cidadão precisa ser bem tratado para querer participar e não apenas ser usado como massa de manobra para construir uma legitimidade fake, para usar a expressão da moda.
Por fim, vale comentar a virtual ausência de qualquer consequência prática pessoal negativa para o cidadão que se abstém do processo eleitoral. Em face disso, pode-se dizer que o voto no Brasil é quase facultativo, apenas o povo ainda não sabe disso. É que a multa cobrada pela Justiça Eleitoral como sanção pela ausência injustificada nas eleições é de valor reduzido – R$ 3,51 por turno das eleições –, menor que o valor de uma passagem de ônibus ida e volta na maioria das cidades brasileiras. Essa multa sequer deveria existir. O voto deveria ser facultativo. Sendo obrigatório, o legislador entendeu que deveria haver alguma penalidade, ainda que apenas simbólica e é preciso mesmo que seja assim, porque a reabilitação do eleitor ausente é altamente desejável e o voto é, antes de tudo, um direito. Uma multa elevada seria inócua, porque os eleitores mais pobres certamente não a pagariam e acabariam por ser excluídos do processo eleitoral pelo cancelamento de seus títulos eleitorais. Seria paradoxal e mesmo inconstitucional que a obrigatoriedade do voto levasse à exclusão de parte relevante do eleitorado.
Em uma sociedade verdadeiramente livre e democrática, não faz nenhum sentido tratar o cidadão como incapaz de decidir se, como e quando deve exercer seu direito de participar da vida política. O voto obrigatório é ontologicamente incompatível com o Estado Democrático de Direito que escolhemos ser em 1988.
* Júlio Marcelo de Oliveira é procurador de Contas junto ao TCU e membro da Diretoria do MPD
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