Debaixo do sol escaldante do centro da cidade, um homem magro, vestido em uma camisa branca, e trajando uma pequena ecobag desce e sobe frequentemente de uma Saveiro, intitulada “carro da mudança”, de onde acena para as pessoas, recebe gritos de apoio e não raro gritos de repúdio.
Repúdio porque a cena citada é em Cuiabá, capital de Mato Grosso, cidade que deu a Bolsonaro 65% dos votos do eleitorado em 2022. E porque o homem de branco é Lúdio Cabral, filiado ao Partido dos Trabalhadores desde a juventude, que tenta vencer as eleições no reduto bolsonarista, onde o adversário é o Abilio Brunini (PL-MT), apoiado pelo ex-presidente passou ao segundo turno com 127 mil votos, uma diferença de 36 mil votos para Lúdio, o segundo colocado.
A capital do estado é estratégica para a agenda conservadora, tendo recebido visitas do próprio ex-presidente, de sua esposa Michelle Bolsonaro (PL) e da senadora e ex-ministra Damares Alves (Republicanos). Em discurso ao visitar Cuiabá, o próprio Bolsonaro admitiu a importância do pleito na cidade.
Leia também
A presença de um petista no segundo turno em Cuiabá já seria uma surpresa por si só se não fossem os resultados das primeiras pesquisas eleitorais divulgadas logo após a eleição no dia 8 de outubro. Os monitoramentos de intenção de votos mostram um empate técnico entre os dois candidatos. Enquanto o PT patina para conseguir vencer em outras capitais, como Fortaleza e Natal, as chances de vitória surgiram de onde menos se esperava.
As pesquisas indicam que 12% dos eleitores de Cuiabá que votaram em Bolsonaro na última eleição agora votam em Lúdio Cabral para prefeito. De repente, muitos olhares se voltaram para a capital de Mato Grosso e muitos analistas políticos se esforçaram para explicar como é que o petista chegou tão longe.
Em entrevista ao Congresso em Foco, a assessora de imprensa Laíse Lucatelli, que trabalha com Lúdio desde 2019, conta que o time de comunicação do deputado estadual percebeu muito rapidamente que o primeiro desafio de Lúdio na política, ainda como parlamentar, seria superar o antipetismo. Para isso, Cabral resolveu não fazer enfrentamentos diretos com o sentimento de ódio ao PT. Focando nos problemas locais, a equipe de Lúdio percebeu que seria possível mostrar soluções além da dicotomia Lula versus Bolsonaro. Uma estratégia simples e que deu certo.
“Quando Lúdio saía para panfletar e para conversar com as pessoas na rua, não só na campanha, ele ouvia que as pessoas queriam votar nele, mas não conseguiam por causa do PT”, conta Laíse Lucatelli, jornalista pós-graduada em Comunicação Política e assessora de imprensa de Lúdio desde 2019. “Então, o nosso desafio era que essa pessoa virasse essa chave, assim como muitas outras dispostas a superar essa resistência”, contou.
Na campanha, Lúdio substituiu o vermelho característico dos militantes do partido pela cor branca. A cor caiu como uma luva para o seu discurso voltado à Saúde de Cuiabá, tema sensível para a população da capital mato-grossense, que teve a maior maior taxa de mortalidade de Covid-19 durante a pandemia e enfrentou uma intervenção estadual no município autorizada pela Justiça por conta de acusações de corrupção e de má administração de recursos públicos do atual prefeito, Emanuel Pinheiro (MDB). Médico de formação, Lúdio se elegeu deputado estadual com um discurso completamente voltado aos problemas da Saúde da capital.
Ainda no primeiro turno, o candidato do PT decidiu fazer uma proposta ousada, ampliando o diálogo para outros temas da cidade. Prometeu que se fosse eleito a tarifa do transporte público seria de R$ 1,00. A ideia teve impacto direto no até então favorito a vencer em Cuiabá, o deputado estadual Eduardo Botelho (União Brasil), cujo irmão é diretor de uma das concessionárias de transporte público de Cuiabá.
Presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) e apoiado pelo governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil), Botelho acabou enfrentando desgastes que não foram calculados. As críticas dos adversários ao transporte público foram um destes desgastes. A decisão do governador de trocar o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que deveria ter sido concluído em 2014, pelo Bus Rupid Transit (BRT), deixou obras inconclusas e causou irritação na população cuiabana, por conta dos congestionamentos e caos das obras atrasadas no centro da cidade.
Além do transporte público, o deputado precisou lidar com o desgaste provocado pela proibição da pesca em Mato Grosso. A Lei 12434/2024, aprovada em março, foi aprovada sob a presidência de Botelho na ALMT. Cuiabá, uma cidade com um passado ribeirinho e ligada à pesca, virou epicentro da indignação dos pescadores, cuja existência profissional passou a ser ameaçada pela nova legislação.
Antes projetado nas pesquisas como líder nas intenções de votos, Botelho enfrentou gradual rejeição ao longo da campanha. Enquanto isso, Brunini e Cabral cresciam na disputa, mirando incessantemente no adversário. No dia 8 de outubro, quando as urnas foram abertas, o resultado se mostrou inesperado, com a vitória de Abilio e a passagem de Lúdio para o segundo turno, com uma diferença de apenas 1742 votos para Botelho.
Na visão do marqueteiro de Lúdio, o jornalista e doutor em comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Pedro Pinto de Oliveira, a campanha de Lúdio não “inventou a roda”. De acordo com Oliveira, o candidato do PT chegou ao segundo turno porque não embarcou na discussão antipetista e falou de problemas reais da cidade, estratégia semelhante à adotada pela equipe de Lula em 2022.
“Reduzir a eleição ao petismo e ao bolsonarismo é uma coisa que apequena o discurso e apequena a política, o grande serviço que o Lúdio está fazendo é dar uma dimensão maior para a política, a política que a gente entende como aquilo que se apresenta como solução para os problemas da pessoa, eu acho que é isso que o Lúdio está fazendo e que serve como exemplo para outras eleições, com aquela serenidade e firmeza que ele tem apresentado”, afirmou Pedro. “O bolsonarismo se mostra estéril quando precisa discutir a realidade”, concluiu.
Um dos problemas discutidos pelo candidato é o calor extremo. Em 2024, a cidade bateu recordes de temperatura e corre o risco de ficar inabitável atingindo a marca dos 50ºC entre 2030 e 2050, de acordo com projeções científicas. A realidade obrigou até mesmo Brunini a falar sobre o assunto, normalmente negado pela extrema direita, que passou a defender o aumento da arborização na cidade.
“A defesa do meio ambiente e da natureza são grandes bandeiras do Lúdio como deputado estadual”, afirma Lucatelli. “Lúdio se preocupa muito com a falta de água, que pode ocorrer se permitirmos que continuem destruindo córregos, rios e o lençol freático”, disse.
A chegada do petista no cenário político de Cuiabá é, na verdade, um retorno. Cabral voltou às urnas em 2018, após sair derrotado nas eleições para governador de Mato Grosso em 2014. No período em que ficou fora da política, o antipetismo cresceu fortemente. Mesmo assim, ele foi o mais votado em Cuiabá para deputado estadual em 2018 e mais que dobrou sua votação em 2022, quando foi reeleito também como o mais votado.
Sem receber visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em 2014 foi o principal cabo eleitoral do petista, Lúdio preferiu trazer o vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), considerado mais próximo da direita. Questionado sobre a ausência do presidente, o marqueteiro de Lúdio afirma apenas que a campanha é baseada em dar atenção aos problemas locais que existem e fugir do discurso sobre problemas irreais.
“Se discutir petismo, você gira o parafuso na areia, é tudo que eles querem, é uma discussão apequenada, os adversários estão desesperados porque a população está entendendo a discussão que lhe afeta”, falou.
Não só o conteúdo, mas a forma das campanhas de Lúdio e Brunini também são diferentes. Enquanto o candidato da direita opta pelo digital e pela presença massificada na internet, Lúdio segue o caminho oposto, com uma campanha voltada para as panfletagens e visitas aos bairros. Na avaliação de Laíse Lucatelli, a presença na rua foi um dos fatores que ajudou Lúdio a chegar ao segundo turno.
“A campanha foi buscar falar diretamente com as pessoas por isso que o Lúdio fez uma campanha de muita rua, falando com as pessoas nas avenidas e nos bairros, uma campanha de carreatas e de panfletagem, a panfletagem permite que você fale com as pessoas, que perceba o que a pessoa está sentindo em relação aos problemas da cidade e o que ela espera do prefeito”, disse a jornalista. “Este contato, olho no olho, nós investimos muito nisso e pode ter sido o grande diferencial que nos levou ao segundo turno”.
Segundo Pedro Pinto de Oliveira, a presença do petista nas ruas permitiu que o eleitorado resistente ao candidato o conhecesse melhor. O que favorece, de acordo com ele, é o perfil do próprio Lúdio.
“O diferencial é que Lúdio trabalhou com um eleitorado conservador e cristão e que não é diferente da trajetória de vida dele, não foi uma coisa artificial, essa é que é a grande força, o Lúdio é um cara com origem no movimento católico, a esposa é evangélica, ele tem uma base de vida pessoal e de trajetória com esses segmentos, então ficou claro que ele poderia dialogar”, afirma o marqueteiro.
Nas capitais do centro-oeste, onde o bolsonarismo ainda é uma força hegemônica na política, Lúdio é um pontinho vermelho (ou branco) no mapa de resultados eleitorais. Em Campo Grande (MS), Camila Jara (PT) obteve apenas 9% dos votos e ficou longe do segundo turno. Em Goiânia, Adriana Accorsi (PT) ficou com 24% e também ficou fora. Nas duas capitais, o eleitor decidirá entre dois candidatos de direita.
A capacidade de ouvir quem está em uma linha ideológica diferente do candidato também foi importante para a campanha. Segundo Laíse, um dos “segredos” talvez tenha sido exatamente isto.
“O que deu certo foi falar com todos que estavam dispostos a ouvir e ouvir todos que estavam dispostos a falar, sem pensar na barreira se a pessoa é bolsonarista ou ela é antipetista, mas ela quer falar alguma coisa”, declarou Laíse Lucatelli.
ótimo artigo parabéns
Parabéns pela reportagem, bem isso, mesmo !