Certa vez recebi um card que ilustra o machismo estrutural que habita na sociedade patriarcal brasileira. Representativo do que penso, publiquei-o nas minhas redes sociais, na série que batizei com o nome “A História contada em Charges”. Nela, uma mulher subia uma escada em que cada degrau, simbolizando um mês do calendário, mostrava as reiteradas facetas da opressão contra as mulheres. Assédio sexual, desigualdade salarial, dupla jornada, estupro, feminicídio e outros degraus mais. Todo mês uma agressão específica.
Todos os meses não! Um deles era excluído das graves ações machistas estabelecidas na escada do patriarcado brasileiro: o mês de março. Na escalada da vida, para o mês de março a impactante charge reproduzia flores, chocolates e brindes comemorativos pelo Dia Internacional da Mulher. Ela nos advertia da hipocrisia com que a sociedade trata a mulher e os seus direitos enquanto pessoa humana. Daí o neologismo “marcismo”, criado para ilustrar que as mulheres apenas são lembradas e reconhecidas no mês de março.
O mês de março de 2024, entretanto, desnudou até mesmo a florida e festejada “ode às mulheres”. É que ele começou com a divulgação do trágico relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontando que no ano de 2023, quatro mulheres foram assassinadas por dia, um absurdo aumento de 1,6% em relação a 2022. Violências que não cessam e não dão sinal de que cessarão, pois segundo os dados divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em razão da Operação Átria, verificou-se um aumento de 63% nos atendimentos às mulheres, com 129,9 mil registros em março de 2024, contra 79,5 mil no mesmo período em 2023.
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Ainda neste março, sem louvor ou flores, a 5ª turma do STJ, por 3 votos a 2, relativizou o estupro de vulnerável, não criminalizando o relacionamento entre um homem de 20 anos e uma menina de 12 anos, que resultou em uma gravidez. Observa-se que, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, 61,4% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos (10,4% têm menos de 4 anos) e cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas. Tudo isso no mês em que a SaferNet divulgou o absurdo recorde de 71.867 denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil on-line, em 2023 (um aumento de 77,13% em relação a 2022).
O “marcismo” também se fez presente no mundo da advocacia. Da 4ª Conferência Nacional da Mulher Advogada, em Curitiba, com o tema central “Evolução e Protagonismo”, a paradoxal e inoportuna palestra de uma influencer que prega a submissão da mulher ao marido, o chamado “direito de propriedade” que, “contrariado”, está na cruel base do feminicídio e da cultura do estupro. E de Sergipe, o estupro de uma Conselheira Seccional, que, desacolhida e desprotegida pela OAB/SE, externou o seu grito de socorro através da renúncia pública ao cargo que a advocacia sergipana lhe outorgou.
As páginas do tempo escritas no mês de março mostraram que as mulheres, infelizmente, ainda são consideradas coisas, despossuídas de direitos, objetos de prazer ou reprodutoras sem prazer. Não se pode esquecer que da Espanha a notícia de que o jogador Daniel Alves, condenado por estupro, deixou a prisão após o pagamento de uma fiança no valor de um milhão de euros. Literalmente o mês de março de 2024 fez “letra morta” a decantada vitória em que se afirmava que o assassinato de mulheres em “nome da honra” não mais habitava a prateleira virtual do Poder Judiciário.
PublicidadeA desigualdade salarial e a falácia do homem provedor são também elementos estruturantes da violência contra a mulher. Virgínia Woolf ensinou que “uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever” sobre sua própria vida, e, assim, enfrentar o machismo estrutural. Mas no campo da independência econômica março não deu trégua, pois a CNI e a CNC ingressaram com a ADI 7612, pedindo que o STF aprecie pontos da lei que trata da igualdade salarial entre homens e mulheres (Lei 14.611/2023).
Março não pode ser apenas um mês posto no calendário dos remorsos ou para legitimar as mentes machistas que ainda estruturam a sociedade brasileira. O Dia Internacional da Mulher é uma data de reflexão e de luta que exige coragem na incansável busca da igualdade real. É reforçar o coro daquelas mulheres que “não querem flores, mas direitos e responsabilidades”. Derrotar o “marcismo” é uma dessas batalhas importantes. E é imprescindível.