Luiz Cláudio Cunha *
O general de Cavalaria Sérgio Etchegoyen, 70 anos, gaúcho de Cruz Alta e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Temer, apesar de já estar na reserva, continua cavalgando. Na terça-feira 17, em entrevista a um programa da TV Pampa, em Porto Alegre, o general esporeou o presidente Lula, que declarou ter “perdido a confiança” em parte das Forças Armadas. O desabafo presidencial acontece após a estranha inércia dos militares, que assistiram apáticos à onda de violência que vandalizou a Praça dos Três Poderes em Brasília no domingo 8. Sem qualquer restrição das forças de segurança, os delinquentes acampados há dois meses diante do QG do Exército saíram de lá e marcharam, sob a escolta da PM de Brasília, até o interior dos palácios do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
“Isso é um ato de profunda covardia do presidente da República, porque ele sabe que ninguém vai responder. Sabe que nenhum general vai convocar uma coletiva para responder à ofensa”, bufou Etchegoyen. O general esqueceu de dizer que o silêncio dos generais, antes e depois da baderna consentida de 8 de janeiro, não é gesto de elegância. É mera questão de disciplina: militar precisa pedir autorização para falar, e, em nome da hierarquia, ninguém pode contestar o comandante supremo da Forças Armadas.
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Etchegoyen ignorou o fato gritante de que nenhum chefe pode confiar na passividade de uma corporação armada quando ela fica estranhamente imóvel diante de um quebra-quebra de palácio que dispõe até de uma guarnição especializada para sua proteção, o Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), criado pelo imperador Pedro I em 1832. A natural desconfiança de Lula chegou ao ponto de dispensar os tradicionais ajudantes-de-ordens fardados que sempre acompanham os presidentes. A partir de agora, só civis irão desempenhar essa atividade junto a Lula.
Língua afiada é uma forte característica do cavalariano Etchegoyen. Em 2014, ele foi o primeiro e único general de quatro estrelas a confrontar publicamente o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada três anos antes por sua comandante suprema, a presidente Dilma Rousseff, e aprovada pelo Congresso Nacional. Ao final de dois anos de intenso trabalho, apesar da persistente sabotagem dos oficiais-generais das três forças, que insistiram em atrapalhar e bloquear as investigações, a CNV produziu a mais rigorosa autópsia do regime militar de 1964-1985, exposta em três volumes e 3.388 páginas que detalham a sistemática, coordenada violação dos direitos humanos no país ao longo de duas décadas.
Ligação de sangue com ditaduras
No seu transcendente relatório final, a CNV lista os nomes dos 377 responsáveis pela morte de 434 pessoas, 210 delas ainda desaparecidas. Sempre focado na cadeia de comando, que aponta os comandantes que instruíram a violência institucional dos comandados, o documento aponta corretamente, por ordem de hierarquia, os autores de graves violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura que tanto encanta o capitão Jair Bolsonaro. Lá estão todos os seus ídolos: os cinco generais-presidentes (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três comandantes da Junta Militar que governou país por dois meses em 1969, além de seis ministros do Exército, sete da Marinha e cinco da Aeronáutica, três chefes do SNI e 24 chefes dos serviços de inteligência das três Forças Armadas – CIE, Cenimar e Cisa -, o braço executivo da repressão. Na sequência, estão os nomes dos outros 324 agentes civis e militares que produziram as torturas e mortes do terrorismo de Estado brasileiro, incluído ali o maior herói de Bolsonaro, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que organizou e comandou por quatro anos o DOI-CODI da rua Tutoia, o mais sangrento do país. Ali, segundo a pesquisa da CNV, passaram 2.541 presos (a torturada guerrilheira Dilma Rousseff, inclusive); 51 não saíram vivos (o “suicidado” jornalista Vladimir Herzog era um deles).
Pois o cavalariano Etchegoyen achou tudo aquilo “leviano” e “patético” na nota que divulgou em nome da mãe e de quatro irmãos. Mais do que o conjunto da obra tétrica produzida pela ditadura, Etchegoyen reclamou da inclusão do nome do santo pai, general Léo Etchegoyen, na lista de militares responsáveis pelas truculências do regime militar. “Ao apresentar seu nome, acompanhado de apenas três das muitas funções que desempenhou a serviço do Brasil, sem qualquer vinculação a fatos ou vítimas, os integrantes da CNV deixaram clara a natureza leviana de suas investigações e explicitaram o propósito de seu trabalho, qual seja o de puramente denegrir. (…) No seu patético esforço para reescrever a história, a CNV apontou um culpado para um crime que não identifica, sem qualquer respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa”, criticou o general.
Etchegoyen, aparentemente, não leu ou não entendeu o que leu. Levou de volta uma inédita chicotada da CNV, que em rara e dura nota oficial rebateu o general e defendeu o seu relatório, relembrando fatos que o filho amoroso esqueceu sobre o pai da ditadura. O repórter Marcelo Godoy lembrou, no Estado de S.Paulo, que quase um século une os Etchegoyen ao Exército brasileiro. “Mais do que a tradição, o nome da família está ligado às agitações nos quartéis e revoltas militares desde os anos 1920, quando os tenentes Alcides e Nelson Etchegoyen sublevaram o regimento de artilharia montada de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, em uma tentativa de impedir a posse do presidente Washington Luís. Derrotado e perseguido, o tenente Alcides, avô do general Sérgio Etchegoyen, participaria quatro anos depois da Revolução que derrubou a República Velha. Durante o governo Vargas, ele trabalhou no gabinete do ministro da Guerra,Eurico Gaspar Dutra’.
A família Etchegoyen, aliás, tem ligações de sangue com a linha dura de ditaduras – não uma, mas duas. O avô de Etchegoyen, Alcides, foi chefe de polícia do Estado Novo (1937-45) do ditador Vargas, substituindo o notório Filinto Muller– que prendeu e entregou a judia alemã Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes, então grávida, à Gestapo de Hitler, que a executou na câmara de gás do campo de extermínio de Bernburg. Nos anos 1950, Alcides encabeçou a chapa Cruzada Democrática nas eleições para a presidência do Clube Militar em oposição à liderada pelo general nacionalista Newton Estilac Leal. Venceu. Em agosto de 1954, assinou o manifesto que exigia a renúncia de Getúlio Vargas. Acabou preso em 1955 pelo ministro Henrique Teixeira Lott, quando este resolveu depor o presidente interino Carlos Luz. Alcides morreu em 1956 e deixou dois filhos no Exército: Leo e Cyro.
O major Etchegoyen e o expert em torturas
O pai de Sergio, Léo, era major e chefe da polícia gaúcha em Porto Alegre, em junho de 1964, quando recebeu com estilo o policial norte-americano Dan Mitrione. Em junho, na capital gaúcha, ele posou para fotos na escadaria do Palácio da Polícia com o ilustre visitante então com 44 anos, especialista em torturas que dava seu know-how à repressão no Rio de Janeiro, como responsável no Brasil do Office Public Safety (OPS), braço da CIA que atuava na América Latina sob a fachada da USAID. Os cursos ministrados por Mitrione eram parte de um programa mais amplo dos EUA para modernizar a polícia gaúcha. A primeira visita a Porto Alegre ocorreu entre 21 de janeiro a 1º de fevereiro de 1964, quando o agente ministrou um curso de 30 horas intitulado “Supervisão e operações de patrulhamento”. Mitrione voltou no mesmo ano, dois meses após o golpe que derrubou o presidente João Goulart, para um curso de 25 horas sobre “Técnica de patrulhamento”, entre os dias 19 e 26 de junho.
Mitrione foi transferido em 1969 para o Uruguai, para disseminar suas habilidades. Lá foi sequestrado pelo movimento guerrilheiro Tupamaros e executado na prisão pelo grupo em 1970. A CNV afundou o pé em sua nota: “Após o golpe de 1964, Leo Guedes Etchegoyen assumiu a chefia da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, período no qual recebeu Daniel Anthony Mitrione, notório especialista norte-americano em métodos de tortura contra presos políticos, para ministrar curso à Guarda Civil do Estado, realizado no período de 19 a 26 de junho.”
Em 1979, já general em São Paulo, Leo Etchegoyen era chefe do Estado-Maior do II Exército e, como tal, responsável direto pelo DOI-CODI, o centro de suplícios onde atuou o coronel Brilhante Ustra, o torturador festejado pelo então deputado Jair Bolsonaro no seu polêmico voto na sessão que afastou Dilma Rousseff do Planalto.
Um tio, Cyro Etchegoyen, trabalhava com o general Milton Tavares de Souza, o Miltinho, o temido chefe do poderoso Centro de Informações do Exército (CIE) da fase mais sanguinária do Governo Médici, e foi apontado pelo coronel Paulo Malhães em depoimento à CNV como a autoridade responsável pela ‘Casa da Morte’, o centro clandestino de tortura e morte montado pelo DOI-CODI do I Exército na cidade serrana de Petrópolis. O general Sérgio não falou do tio, mas se incomodou pelo pai, citado no relatório final da CNV de dezembro de 2014 como um dos 377 agentes do Estado brasileiro responsáveis por crimes na ditadura.
Além da fraternal acolhida ao torturador Mitrione, que o general não lembrou, a CNV cita que Léo, em 28 de dezembro de 1979, “na qualidade de chefe do Estado-Maior e supervisor das atividades do DOI-CODI, fez calorosos elogios aos serviços prestados pelo tenente-coronel Dalmo Lúcio Muniz Cyrilo, chefe do DOI-CODI/II Exército”.
Para refrescar a memória do Etchegoyen filho, a CNV lembrou que Cyrillo atuou “como chefe de equipes de interrogatório do DOI-CODI, tendo desempenhado a função de subcomandante nos períodos de Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel” — os dois coronéis, por sinal, citados na lista dos 377 agentes da ditadura, ao lado do tio e do pai do general Etchegoyen.
A CNV pisou mais fundo, relembrando na sua resposta:
“Em 1980, quando Léo Etchegoyen era chefe do EM do II Exército, seu comando esteve vinculado ao planejamento da prisão coletiva de sindicalistas e lideranças dos metalúrgicos da região metropolitana de São Paulo conhecida como ABCD, bem como do sequestro de integrantes de organizações de direitos humanos que prestavam solidariedade a esses trabalhadores, como os advogados José Carlos Dias — então presidente da Comissão Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo — e Dalmo Dallari — ex-presidente da CJP—, prisões efetuadas com violência, sem mandado de prisão e sem a devida comunicação às suas famílias”. O repórter Marcelo Godoy lembra que, identificados com a linha dura do período Médici, os Etchegoyen perderam espaço no Exército quando Ernesto Geisel iniciou a abertura lenta e gradual do regime. Em 1979, Leo foi nomeado chefe do Estado-Maior do então comandante do 2º Exército (São Paulo), Milton Tavares. O irmão chefiou a 2ª Seção do Estado-Maior (Informações). Juntos, cuidaram da repressão às greves do ABC. O pai de Sérgio decidiu passar para reserva após o irmão ter sido preterido na promoção para general, em 1983.
A história deve ser revelada, diz a Justiça
Diante da carga avassaladora da Comissão, o cavalariano Sérgio não rebateu a nota da CNV. Em vez disso, em nome da família, Etchegoyen ajuizou ação contra a União após a CNV ter incluído o nome do pai no relatório final. Na visão dos autores, a Comissão difamou a memória do militar ao não individualizar nem especificar a conduta penal que lhe foi atribuída. Além da exclusão do nome de Etchegoyen do relatório, os filhos e a viúva também pediram que a União fosse condenada a pagar R$ 90 mil a título de danos morais. Adicionalmente, pediram retratação das imputações em órgão de imprensa — nacionais e internacionais.
Em abril de 2017, ao analisar o mérito da ação, a 3ª Vara Federal de Porto Alegre rejeitou o argumento da família de ‘‘imputação criminal genérica’’, reconhecendo que o relatório da Comissão possuía amplo lastro probatório. Por consequência, julgou improcedente a ação.
No entendimento da juíza Maria Isabel Pezzi Klein, o relatório justifica a inclusão do nome de Etchegoyen e de outros servidores públicos. É que esses agentes, mesmo sem participação direta nos atos de tortura e execução de presos, permitiram, através de atuação comissiva ou omissiva, que as violações fossem cometidas nas unidades do Estado por eles administradas.
Os autores recorreram da decisão ao TRF-4. Na apelação, repisaram o argumento de que não ficou comprovada a prática de ato ilícito, pelo general, que justificasse a inclusão de seu nome no relatório elaborado pela Comissão.
No julgamento prevaleceu o voto da relatora da apelação, a desembargadora federal Vivian Josete Pantaleão Caminha.
Em sua manifestação, ela frisou que a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade não atribuiu responsabilidade jurídica e persecutória aos citados nos relatórios. Em síntese, os trabalhos, que visaram à apuração da verdade naquele período histórico, têm apenas finalidade investigativa. Por isso, o Poder Judiciário não pode interferir nas conclusões do relatório.
Na conclusão do voto, a desembargadora Caminha ressaltou: “Os fatos históricos passados durante o regime militar, antes sigilosos, devem ser revelados a quem viveu aquele período de nossa história e às novas gerações, concordem os envolvidos ou não, sendo o relatório da Comissão da Verdade apenas um destes instrumentos”. Para o TRF-4, portanto, o material da CNV possui o objetivo de informar e esclarecer fatos históricos de interesse público. Portanto, disse o tribunal, “não procede o argumento de ofensa à honra do falecido, sendo, por consequência, incabível o pagamento de indenização por dano moral, retratação pública e alteração de registros documentais”.
Pois esse é o general de Cavalaria que acusa Lula de covardia.
Tempos muito estranhos!…
*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, 2008) e foi consultor da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no grupo de tarefa que investigou a Operação Condor e as conexões repressivas do Cone Sul ao tempo da ditadura.
** Texto publicado originalmente no Jornal GGN, de Luís Nassif.
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