Ricardo Prado Pires de Campos *
Em artigo intitulado “Não é a urna, é a democracia”, o procurador regional da República, Pedro Barbosa Pereira Neto, alerta que o ataque às urnas eletrônicas não visa atingir às urnas propriamente, mas sim, um objetivo maior, visa destruir a nossa democracia. Abalada a confiança no sistema eleitoral, para que seria preciso fazer eleições?
Todavia, para entender a questão dos ataques à democracia, se faz necessário um olhar mais profundo sobre “A fragilidade de nossa democracia disfuncional”, anotada por Júlio Marcelo de Oliveira, procurador do Ministério Público de Contas da União.
Todas as sociedades possuem conflitos a serem administrados. Basta olhar nossas próprias vidas. Quem nunca teve um problema com um fornecedor de serviços ou mercadoria? Quem não teve uma relação negocial como inquilino ou locador que não deu certo ou não presenciou uma briga em condomínio? Quem não tem um problema de relacionamento na família, no trabalho ou na escola?
A vida social, em grande parte, é consumida resolvendo conflitos. As relações humanas são complexas e altamente conflituosas.
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Para resolver esses conflitos criamos uma série de instrumentos, processos e instâncias de poder. No âmbito do Estado, temos as polícias civil e militar, o sistema de Justiça e os Parlamentos. No âmbito privado, temos câmaras de arbitragem, departamentos de pessoal, consultórios de psicologia e psiquiatria, os confessionários nas Igrejas, além de inúmeras outras formas de soluções de conflitos.
PublicidadeOcorre que nenhum desses métodos é cem por cento eficaz. Quem perde nunca sai satisfeito. Todavia, quando a crença geral no método ou na instituição é significativa, a pessoa acaba sendo levada a aceitar a derrota pacificamente. Alguns nunca aceitam.
Os problemas se agravam quando a descrença nos métodos, nos processos ou nas instituições se elevam em demasia. Claro, há conflitos também entre as instituições, e não apenas entre Poder Executivo e Judiciário, ou entre ciência e religião, para ficar nos mais recentes. Vale lembrar o falso dilema entre vacina e cloroquina.
Disputas são saudáveis desde que respeitem às regras do jogo. Todavia, quando alguns apelam para a fraude ou para a violência, precisam ser contidos, punidos ou expulsos do jogo. A mentira, as fake news não são métodos válidos de convencimento da audiência. Argumentos podem ser mais ou menos consistentes, podem ser mais ou menos demonstráveis, mas se espera que os expositores sejam leais, não inventem dados, estatísticas falsas ou coisa do gênero. Também, não se admite que o sujeito queira ganhar no grito, ameaçando ou agredindo os adversários.
As competições olímpicas são exemplos de respeito às regras do jogo e, por isso, são valorizadas e cultuadas. Motivo de orgulho para seus participantes e de admiração pelos telespectadores.
Todavia, nosso mundo político e jurídico não tem dado o mesmo exemplo. As trapaças aparecem no dia a dia, as mentiras são veiculadas com profusão intencionalmente, e não faltam as tentativas de ganhar no grito.
É óbvio que nem toda atividade parlamentar ou judiciária ocorre dessa forma. A maior parte do tempo, os sistemas jurídico e político funcionam regularmente, todavia, enquanto os desvios são noticiados na primeira página, os bons exemplos ficam esquecidos.
Não temos valorizado corretamente os instrumentos que temos a nossa disposição e que funcionam. O SUS só ganhou um pouco de reconhecimento diante da pandemia. No cotidiano, sobram mais críticas aos defeitos; e eles realmente existem. Todavia, sequer nos aprofundamos em analisar corretamente os problemas.
O SUS não é criticado pela incompetência de seus profissionais, mas sim, pela falta de profissionais em número suficiente para dar conta da demanda (essa reclamação é constante em relação a todos os serviços públicos). No entanto, o discurso que se segue não é o de obtenção de mais profissionais para dar conta da demanda, mas sim de privatizar o serviço como se a “privatização” fosse uma mágica transformadora em serviços de excelência.
As melhores universidades do país, ainda, são as públicas. USP, Unicamp e algumas das universidades federais se destacam, apesar de já possuirmos grandes conglomerados na iniciativa privada.
Temos uma legislação no país que está muito longe de ser ruim, embora apresente alguns problemas sérios. Na sua maioria, a legislação brasileira é bastante razoável, de boa qualidade em muitos casos.
O Poder Judiciário vive às turras com um volume de serviços absurdo. A maior queixa é a morosidade, mas ela decorre exatamente do alto grau de litigiosidade da sociedade brasileira; e de um erro que estamos longe de corrigir. Formamos advogados para demandarem em juízo, e não para serem agentes de pacificação e solução dos conflitos. A formação do profissional do Direito busca a demanda, a ação e, portanto, a intervenção do juiz. Com o aumento do número de faculdades e de profissionais, o Poder Judiciário possui cada vez mais processos. Já atinge milhões de feitos e só faz crescer. Como ter Justiça rápida nessas condições? Somente transformando os profissionais do Direito em agentes de solução e não em meros provocadores da guerra processual.
As críticas constantes às nossas instituições, sem aprofundar a análise dos problemas e sem a apresentação de propostas viáveis de solução, apenas servem para desacreditar os sistemas jurídico e político, desacreditar a democracia.
As pessoas de boa cultura percebem a evolução civilizatória que o mundo vem enfrentando, mas no cotidiano isso pode não parecer tão claro diante dos desafios da sobrevivência para parte considerável da sociedade. Quem pouco possui pode arriscar o pouco que tem diante da promessa (mágica) de um futuro brilhante. Quem conquistou seu lugar ao Sol e a sombra, seguramente, não se sente tentado a embarcar em aventuras de pouca viabilidade. Precisamos encontrar uma forma de valorizar os bons políticos, de mostrar à sociedade que eles existem, como existem bons médicos, bons engenheiros, bons professores, e atualmente, boas médicas, boas professoras e engenheiras.
Infelizmente, político que fala a verdade e é honesto não vira notícia. Juiz que cumpre seu dever não é reconhecido. Todavia, quando saem da linha, ganham o direito aos minutos de fama. Quanto mais saem da linha, maior o tempo de fama. Estamos premiando às avessas.
A população não conhece os bons políticos, nem os bons juízes; mas é capaz de mencionar espontaneamente os nomes de dezenas de profissionais implicados em falcatruas.
Na hora da eleição, votam naqueles que conhecem, mesmo que haja objeções. Os demais, os honestos, os competentes, não são opções, são desconhecidos. Essa lógica perversa, tem nos condenado a estagnação. E, agora, pior, a retrocessos em todas as áreas.
O futuro da democracia depende do valor que a sociedade der ao método democrático como forma de solução de conflitos, inclusive conflitos eleitorais. Creio que as pessoas com boa cultura consigam enxergar isso de forma muito evidente, infelizmente, a boa cultura ainda não é apanágio de toda a sociedade.
É urgente, pois, que levemos informações de qualidade para todos, que as pessoas possam desenvolver seu espírito crítico e não se deixem enganar pelos sofistas, pelos estelionatários e por todos àqueles que não tendo competência para o jogo querem ganhar burlando às regras. O Brasil sempre teve redutos de excelência e riqueza, apesar de muita miséria e ignorância. Precisamos expandir a excelência para gerarmos mais riqueza, em lugar de exportar nossa mão de obra para os Estados Unidos e a Europa.
Os responsáveis pela imprensa no Brasil precisam descobrir o salutar equilíbrio entre vender escândalos e fazer análises profundas e compreensíveis que nos permitam evoluir enquanto sociedade. A imprensa, enquanto voz relevante na sociedade, não pode ser apenas o retrato das tragédias do cotidiano, precisa direcionar o debate para a obtenção de soluções que permitam manter viva a esperança do amanhã.
Ricardo Prado Pires de Campos é procurador de Justiça aposentado, professor convidado de Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, mestre em Processo Penal, e presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático.
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