Luiz Rabelo*
Durante os longos 21 anos da última ditadura militar brasileira, manifestações públicas que, por quaisquer motivos, desagradavam os donos do poder sofriam repressão certa e imediata. Atividades populares em espaços públicos eram desfeitas em minutos, à base de porrada e do terror institucionalizado pelas forças de segurança que atuavam guiadas pelas ordens militares.
Essas ações absurdas estavam em total harmonia com os objetivos nefastos da ditadura que, a pretexto de manter a ordem pública, violavam sem qualquer pudor direitos essenciais da população, tais como os de livre manifestação e expressão em suas diversas formas.
Passados mais de 25 anos da redemocratização, causa enorme espanto a constatação de que o espírito antidemocrático que dominou o país durante os anos de chumbo ainda circula em certos espaços territoriais da nação. Surpreende ainda mais observar que a assombração perambula com desenvoltura, sem qualquer constrangimento, pela capital do país, hoje governada por um grupo político que parece não ter qualquer compromisso com os legítimos anseios de parte expressiva da sociedade.
Os tristes acontecimentos do último domingo (1/09) são muito reveladores da maneira como o atual governo do Distrito Federal conduz sua relação com os diferentes segmentos sociais. Refiro-me à ação absurda perpetrada pelos agentes do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) e outras agências distritais no Eixão do Lazer, na Asa Norte.
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Sob o argumento de que atendiam reclamações de moradores do bairro onde ocorreu o lamentável episódio, promoveram uma verdadeira onda fardada para varrer dali, sem qualquer aviso prévio, trabalhadores e frequentadores de um espaço público que se consolidou há tempos como um local de confraternização. Um ambiente, este sim, em completa harmonia com os propósitos que motivaram a criação da cidade. Sim, a concepção urbanística de Brasília previu que a cidade deveria proporcionar a seus moradores espaços de lazer, de convivência.
A forma abrupta e inesperada como se deu a ação do governo local no último domingo fez lembrar o modus operandi da ditadura. Não houve, até onde se sabe, casos de prisões ou violência física por parte dos agentes públicos contra quem se encontrava no Eixão, mas não há como atenuar, muito menos negar a violência psicológica e os prejuízos causados pela ação arbitrária do poder público distrital. Basta imaginar os danos econômicos causados aos trabalhadores que ali estavam de boa-fé. Pessoas, no geral, que dependem das vendas que realizam no espaço público para prover sua própria subsistência.
Tivesse verdadeiro ânimo democrático, antes de determinar a intervenção opressiva sobre a população frequentadora do espaço público, o governo do Distrito Federal poderia, e tinha todo ferramental para tanto, ter promovido uma ampla discussão pública preliminar com todos os interessados com o propósito de encontrar uma solução mediada para a questão.
No entanto, preferiu o caminho despótico. Optou pela saída autocrática. Tomou partido e, sem demonstrar de maneira transparente como chegou à conclusão de que as atividades no Eixão prejudicavam moradores do bairro, despejou sobre os frequentadores do espaço a força coercitiva do Estado. Como se a maior parte dos milhares de usuários das atividades do Eixão do Lazer não fosse, vejam só, constituída pelos próprios moradores da Asa Norte.
Como político que é, o governador do DF sabe que precisa governar para todos e não apenas para um grupo seleto de pessoas. Antes de tomar decisão de tamanho impacto social, deveria, portanto, ter levado isso em conta. Deveria, por dever democrático e de cautela, ter consultado antes as partes interessadas. Preferiu outro caminho que, ao que tudo indica, lhe trouxe péssimas consequências políticas e diversos questionamentos jurídicos.
Como advogado que também é, sabe que, no exercício de suas atribuições de governador, precisa fazer juízo de ponderação antes de tomar suas decisões. Se, por um lado, alega ter protegido, com a ação desastrada, os direitos dos moradores ao silêncio e à ordem pública, por outro tem o dever de assegurar a outras pessoas a fruição dos direitos de reunião, de livre expressão e manifestação artística. Do mesmo modo, deveria ter pensado na situação dos comerciantes de rua. Todos têm direitos.
Pressionado pela reação negativa da opinião pública, publicou decreto que anuncia a elaboração de um Plano de Uso e Ocupação do Eixão do Lazer. Por que não fez esse anúncio antes de tomar a medida tirânica? Por que não realizou audiência pública para discutir com a sociedade a melhor saída para a questão?
A emenda ficou pior que o soneto. O decreto não contém uma linha sequer sobre as manifestações culturais que, há tempos, são o coração do Eixão do Lazer. São elas que atraem os frequentadores. Em torno delas é que se formam as rodas de conversas e que se dão os encontros, as manifestações espontâneas de felicidade genuína das pessoas.
O Plano Piloto há muito é alvo de críticas que o acusam de ser um espaço elitista, frequentado por poucos privilegiados. Quando a população resolve desafiar esse desconcerto, ocupando democraticamente o espaço que lhe pertence, é contraditoriamente tolhida por uma ação estatal orientada a proteger direitos de parte da sociedade.
Ninguém com o mínimo juízo na cabeça é contrário à disposição de um governo eleito de tentar organizar o espaço público. Não há frequentador do Eixão do Lazer que, em sã consciência, se oporá a uma ação estatal que tenha verdadeiro objetivo de organizar e prover segurança para o local. No entanto, não há também um só cidadão que irá aceitar uma solução para o impasse criado pelo governo do DF que não leve em consideração os diversos anseios e direitos envolvidos. Direitos de todos, sem exceção. E não somente da parcela da população que o governador, por razões pouco transparentes, quer agradar.
O Eixão é de todos, não de poucos. O Estado não tem respaldo constitucional para, de forma arbitrária, escolher apenas o que quer que ali ocorra. Para fazê-lo, precisa ter motivação clara e autorização legal, sob pena de violar de forma inaceitável direitos fundamentais da população.
Me contenta perceber que a população de Brasília, incluindo milhares de moradores da Asa Norte, bairro de pendor progressista, estão se mobilizando para defender, em última análise, seu direito à felicidade. Neste próximo domingo, temos manifestações programadas para o Eixão. Torço para que as pessoas reacendam seu espírito cívico e delas participem. Devemos pressionar as autoridades públicas para evitar a vitória do autoritarismo.
Devemos fazer o governo perceber que não pode ignorar a seu bel prazer a vontade de parte expressiva da sociedade. O mesmo governo que, aliás, ignorou a sociedade quando patrocinou na Câmara Legislativa, também de forma antidemocrática, o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) que, não fosse a forte reação social, teria escancarado a porta para a completa desfiguração da cidade patrimônio cultural da humanidade
*Jornalista, músico e frequentador assíduo do Eixão do Lazer
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