Durante diálogo com líderes da Igreja Católica, um dos participantes afirma: “A população está alienada”!
Antes estivesse.
A população não está alienada. Está informada e mobilizada em torno das pautas da extrema direita.
Mais que chegar a essa conclusão, o campo político progressista e democrático precisa refletir de forma crítica e, acima de tudo, autocrítica sobre como a extrema direita mantém essa capacidade de influência e mobilização, mesmo após a vitória do presidente Lula em 2022.
Meu ponto de partida para essa reflexão é o artigo de Carlos Pereira, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, sob o título “Voto de pobre de direita não é fruto de alienação”. No texto, o articulista contrapõe o diagnóstico do professor e sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de que o pobre de direita é desinformado e alienado. Portanto, seria apenas uma questão “informacional”, com a ideia de que esses eleitores teriam consciência de que a esquerda oferece uma “a combinação de emprego CLT e de programas de proteção social e de transferência de renda”, “ancorada em aumento do gasto público em um contexto de restrição fiscal e de intolerância à elevação da carga tributária”.
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Parece existir reducionismo em ambas as conclusões. Por um lado, simplesmente culpar o cidadão-eleitor, sob o argumento da alienação, exclui a necessidade de autocrítica pelos erros cometidos pela esquerda. Por outro, reduzir esse dilema a uma questão de natureza fiscal afasta o debate sobre prioridades no gasto público e sobre o papel do Estado na proteção do trabalhador e dos pobres.
PublicidadeAinda que não tragam respostas definitivas, elementos das análises de Jessé Souza e Carlos Pereira têm dimensões de verdade e apontam caminhos.
É preciso refletir sobre a crise do campo progressista com a certeza de que ainda estamos longe de um diagnóstico preciso e, mais longe ainda, de saber o que fazer diante da encruzilhada que se apresenta à nossa frente.
Nos primeiros governos do presidente Lula houve relevante avanço nas políticas sociais. Mais acesso a educação, com significativa expansão do acesso ao ensino superior, com programas como Fies e Prouni; ampliação do SUS, em especial da cobertura da atenção básica; programa de transferência de renda, como o Bolsa Família; acesso a energia para comunidades rurais, com o Luz Para Todos; e negociações salariais vantajosas, decorrentes do bom ambiente econômico.
Com o tempo, esses avanços foram se incorporando ao patrimônio cidadão do brasileiro. Alguns até reconhecem esses ganhos, mas já sonham com novas perspectivas. Outros são de uma geração que já recebeu esses benefícios, sem participar das lutas e sem até mesmo identificar quando, como e por quem eles surgiram.
O fato é não há mais ganho eleitoral com essas políticas. E que a população quer mais.
Talvez aqui estejam alguns dos grandes dilemas para o campo progressista: o Estado pode oferecer mais ou o Estado chegou ao limite e não tem mais o que oferecer? Se pode, é papel do Estado, mesmo em governos progressistas, avançar no domínio econômico para oferecer algo mais?
É aqui, diante desse dilema, que a extrema direita entra dizendo: “Agora é contigo. Eu tenho um sonho aqui para te oferecer. Um sonho individual que depende só de ti, do teu esforço”.
A extrema direita foi capaz de perceber que o a população pobre “continua pobre, mas agora acredita em meritocracia e no próprio negócio” (Felipe Nunes, em entrevista ao jornal O Globo, 28.10.24), que nem todos os pobres sonham com uma carteira assinada, direitos trabalhistas e uma jornada de 44 horas semanais. Fora o tempo de deslocamento, que pode aumentar em até 24 horas semanais.
E nós? Que sonhos temos para oferecer a essa nova geração?
Diante da falta de respostas para o futuro, seguimos resgatando o passando e solicitando gratidão ou amedrontando para o risco de perda de direitos consolidados. Mas, está claro que isso não tem sido eficiente.
Acrescente a essa incapacidade de conexão com os anseios do povo uma grave e profunda crise de representatividade dos movimentos sociais. Em especial, os movimentos estudantis e sindicais, decorrentes de burocratização, caciquismo, manipulação de eleições e assembleias, processos de negociação coletiva sem nenhum envolvimento dos representados.
Os mecanismos tradicionais de formação política da esquerda – a associação de moradores, a entidade estudantil, o sindicato e o próprio partido – perderam completamente a capacidade de comunicação com as suas bases, porque os dirigentes não se dispõem mais ao trabalho braçal da militância. Porque não entendem o mecanismo da nova comunicação das redes sociais, porque as negociações coletivas, em regra, acontecem em conchavos, sem mobilização das bases, entre outros porquês.
Uma geração que nasceu com direitos incorporados aos seu patrimônio cidadão, encantada pela ilusão do discurso de que a prosperidade só depende do seu esforço individual, que não se enxerga nas suas entidades representativas e nem em partidos, que acessa informações por canais com que a esquerda não aprendeu a falar, é uma geração que vem se forjando hostil a qualquer pensamento progressista.
Reconectar o pensamento progressistas à maioria do povo brasileiro exige um esforço coletivo que parte, necessariamente, de um processo de autocrítica. Da abertura de espaços de escuta nos partidos e entidades do movimento social. Da formação e projeção de novas lideranças.
O filósofo Francisco Bosco, na introdução da obra O diálogo Possível. Por uma reconstrução do debate público brasileiro, diz: “O objetivo aqui é tornar o debate mais verdadeiro, mais aderente à realidade [e não um parti pris ideológico qualquer] e canalizar a energia transformadora para os alvos certos, com instrumentos adequados”.
Aderir o debate à realidade, canalizar energia para alvos certos e buscar instrumentos adequados pode parecer simples, mas é o Everest que temos à nossa frente para escalar, com coragem e resiliência.
É preciso abrir as janelas, deixar arejar, para ser visto e voltar a ser disruptivo, com o objetivo de ser ouvido.
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