por Melillo Dinis do Nascimento*
O Acampamento Terra Livre (ATL) completou 20 anos de muita mobilização do movimento indígena em 2024. São tempos de luta. O ATL toma Brasília, toma o país, espalha força e convoca mulheres e homens à ação! Neste abril, desde o dia 22 até o 26, milhares de lideranças, de norte a sul, do centro e do litoral, dão muito mais beleza e força ancestral para tantas demandas históricas: pressões ilícitas, como o narcotráfico; grandes projetos de infraestrutura, como a Ferrogrão, uma obra sem qualquer critério socioambiental na Amazônia; desmatamento, deflorestação e destruição em todos os biomas; mineração que rasga a terra e a vida dos povos; exploração em suas várias faces e tantas outras mais. Mas a questão fundamental desta grande união é o direito às terras indígenas, com o mote “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”.
O grande desafio é o tema do “marco temporal”, declarado como inconstitucional pelo STF (9 a 2, no julgamento do Recurso Extraordinário-RE 1017365) em 2023. A Lei 14.701, de 20 de outubro de 2023, reeditou a confusão e o debate está no STF. Senadores e deputados votaram o veto presidencial de maneira fatiada e devolveram à lei o trecho que dá nome ao projeto, ao definir as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” como aquelas “habitadas e utilizadas” pelos indígenas para suas atividades produtivas na data da promulgação da Constituição. Com a rejeição do veto, o resultado oferece uma “imaginação”: a de que os indígenas somente terão direito à demarcação apenas das áreas que ocupavam até 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Nada mais equivocado. Foram mantidos, por parte do Congresso, os seguintes pontos vetados por Lula: a retomada de terra indígena por alteração de traços culturais; o plantio de transgênicos em terras indígenas; e o contato com povos isolados, que deve ser evitado ao máximo, salvo para prestação de auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.
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Além da insistente violação dos direitos do Poder Legislativo, há uma retórica política e um jogo de interesses no fundo da crise que se estabeleceu nas relações institucionais. Na prática, esse vai e volta entre Congresso e Suprema Corte causa insegurança jurídica na demarcação de terras indígenas. É parte da estratégia dos setores mais reacionários do parlamento. Declarado inconstitucional o “marco temporal”, houve uma nova lei. Se, caso a lei seja, mais uma vez, declarada inconstitucional, haverá uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). E por aí vai… A intenção é clara: impedir a demarcação das terras indígenas; pressão no governo federal, ainda claudicante quanto a este tema; criar paralisações no Poder Judiciário de primeira e segunda instância, atrasando a garantia deste direito fundamental dos povos indígenas.
Mas o que já era complicado tende a piorar. Com a inclusão, no voto síntese que foi vencedor no STF no RE 1017365, de uma ideia de indenização pelo valor da terra em si, além das eventuais benfeitorias feitas no território, teremos um processo administrativo ainda mais complexo que, além de exigir muito mais tempo, vai também requerer recursos orçamentários, o que indica uma piora enorme na questão da demarcação de terras indígenas.
Lula, quando assumiu o mandato, no início de 2023, prometeu demarcar 14 terras indígenas nos primeiros 100 dias de governo. Passados mais de 400 dias de gestão, a meta ainda não foi alcançada. Em 18 de abril de 2024 homologou-se mais 2 terras, chegando a 10. É muito mais que a maioria dos governos anteriores, mas ainda muito pouco frente à dimensão do problema. Segundo dados da Funai, há 247 terras esperando definição: 132 estão sob estudo, 48 estão delimitadas e 67 tiveram declaração como terra indígena. Outros 12 territórios receberam homologação, a última fase antes da demarcação, e 477 finalizaram a regularização. Existem ainda 490 áreas reivindicadas por indígenas e sob análise inicial da Funai.
PublicidadeEnquanto isso, na Sala de Justiça, ou melhor, no STF, o quadro se transformou em um grande quebra-cabeça. O julgamento do RE 1017365, em que o Supremo declarou a tese como inconstitucional, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, ainda não foi concluído, passível da análise de Embargos de Declaração. Noutro campo, após a promulgação da Lei 14.701/2023, o quadro ficou ainda mais intricado: uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 87), três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 7582, 7583 e 7586) e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86), nas quais partidos políticos e entidades da sociedade civil questionam a Lei do Marco Temporal. O relator de todas é o ministro Gilmar Mendes. Ele acabou de decidir (em 22 de abril), em liminar, que há conflito entre possíveis interpretações da nova lei e as balizas fixadas pelo STF no julgamento do RE. Na decisão, diante da grande confusão e do conflito social, determinou o início de processo de conciliação e mediação, além de suspender, em todo o país, os processos judiciais que discutem a constitucionalidade da lei do marco temporal até que o STF conclua toda a questão. Ele explicou que a medida visa evitar o surgimento de decisões judiciais conflitantes que possam causar graves prejuízos às partes envolvidas (comunidades indígenas, entes federativos e/ou particulares).
Em questões assim, a última palavra é sempre do STF, por ser responsável pelo controle constitucional. Desta vez, porém, o marco temporal é uma lei federal, e sua invalidação, como for, trará altos custos políticos à Corte, em meio a uma relação já conturbada com o Congresso. Há um grande desafio, de toda a sociedade e do Estado brasileiro. Diante de mais uma tática que impede a realização e a garantia dos direitos dos povos indígenas, não se pode hesitar. Não sei como será o próximo ATL de abril de 2025. Mas suspeito que será ainda mais forte do que este de 2024, se não houver uma rápida decisão judicial que respeite o marco ancestral. Os povos indígenas sempre estiveram aqui!
* Melillo Dinis do Nascimento é advogado do Instituto Kabu (do povo Mẽbêngôkre – Kayapó), assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) e membro das Comissões de Direito Indígena da OAB Federal e do Distrito Federal.
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