Elizabeth Veloso*
Estava voltando para casa depois de um dos dias mais cansativos da minha vida, e me deliciava com o rosa das cúpulas da Câmara e do Senado, a cor que espana o câncer de mama. Olhei com certo tédio para o grupo de turistas postados à frente do meu carro, com cadernos e canetas na mão, escoltados por um furgão logo atrás.
No modo “piloto automático”, dei a partida na ignição e vi um senhor, totalmente indiferente à minha presença ameaçadoramente motorizada, verticalmente “esparramado” à minha frente. Um olhar meio japonês, uma cara conhecida… tive que olhar mais uma vez agora com a ajuda do farol ligado, mas só tive certeza quando ele enfiou a cabeça na minha janela para me pedir desculpas por bloquear a minha passagem: Fernando Meirelles.
Perguntei, atônita, à moça que vinha atrás:
– É o Fernando Meirelles?
Com minha pretensão pseudo-intelectual, eu odeio essa história de tietagem. É tão ruim quanto me chamarem de chicleteira ou popuzuda! Suprema humilhação! Sou preconceituosa, admito. Mas entre o impulso de arrancar com o carro à toda para não sucumbir à primeira tietagem da minha vida ou sair correndo para jogar na loteria e gastar aquele momento de sorte, eu desliguei os motores e me entreguei nos braços de Meirelles, o cineasta dos meus sonhos e dos filmes com temas-pesadelo!
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– Me desculpe, você é o Fernando Meirelles?, perguntei.
Eu não acreditava!
Fernando Meirelles sem audiência! Na minha frente. Com reflexo cor de rosa, no cartão postal mais belo de Brasília, só para mim! Me pedindo desculpas por roubar cinco segundos do meu dia!!!??? Da minha vida!!!???
– Eu só desci do carro para dizer que, se soubesse que era você, eu teria passado por cima!, sapequei.
– Só para dizer para todo mundo que eu passei por cima do Fernando Meirelles.
Fernando Meirelles não se perturbou com a frase mais estúpida que deve ter ouvido na vida. Me olhou nos olhos – era noite, mas disso eu tenho certeza! – abriu um enorme sorriso, estendeu a mão do cumprimento e me acolheu.
Eu não acreditava que tinha à minha frente, só para mim, sem qualquer bilheteria, o homem de maior bilheteria do país. Que havia me deparado com o gênio do cinema verdade no Brasil sem qualquer concorrência. Todinho para mim. Sorrindo para mim. E concordando que eu não deveria ter passado por cima dele. Afinal, ele pedira desculpas!
Caramba! É esse o Brasil que eu quero para mim! É claro que me embolei na continuação da conversa, e, zunindo, zipei-me no meu carro e saí com o coração aos pulos, e as mãos abanando por ter pedido a chance de abraçar aquele ser humilde de quem eu, supostamente, salvei a vida!
É isso Beth! Esse é o Brasil que eu amo! Em que eu acredito! Que faz de mim, segundo as pesquisas mais malucas e também algumas um pouco mais confiáveis, a pessoa mais feliz do mundo, junto com outros 190 milhões de brasileiros!
Eu quero esse Brasil que é grande, mas que é também anônimo, e se coloca com sua equipe de trabalho no centro do poder como um turista qualquer!
Eu quero esse Brasil que não dá carteirada, não esnoba ninguém, e que põe a cara à tapa na minha janela para pedir desculpas por ter tornado a minha vida – um tiquinho – mais difícil. Tão diferente de políticos que se protegem atrás de guarda costas e falsos pobres para fazer seu proselitismo…
Eu quero esse Brasil que consegue, de fato, enxergar o Brasil dentro do Brasil, como no inigualável Cidade de Deus, e não faz castelinhos de areia com programas mirabolantes, porém incapazes de resolver os problemas estruturais do país, que são emprego, crescimento, e uma população mediocremente educada para o trabalho.
Eu quero esse Fernando Meirelles, que sabe fazer, que faz, e que, com incrível senso de humor, sorri diante das frases mais disparatadas e exala uma energia que só, somente os brasileiros têm.
Eu quero esse destino – não das mesmices, do grito que me confunde, de números dos quais eu duvido, da política remediada -, mas o destino que me surpreende com a oportunidade de cruzar com uma das pessoas mais brilhantes que existem sabe lá Deus em quantos acres ao redor do planeta.
Tudo bem que perdi a minha chance de tentar ciceronear Fernando Meirelles por Brasília, ou colocar meus serviços de consultora na área de comunicação e audiovisual à disposição dele, mas eu quero ter esperança que o futuro vai colocar vários outros Meirelles à minha frente, de maneira simpática e exclusiva, porque eu vou votar na mudança. Não sei o que me espera na curva, mas consigo enxergar bem o retrovisor. E entre perdas e ganhos, entre avanços e retrocessos, não há dúvidas de que o revezamento do bastão torna os competidores muito mais fortes e vigorosos. É preciso mudar. Ponto!
Os competidores somos nós, destemidos como Meirelles diante do meu carro velho, ano 2008, numa das pistas de mais alta velocidade de Brasília.
Competidores que fazem a própria história, seja em filme, seja na labuta diária no Congresso, seja nas urnas, sem terceirizar o serviço de cidadania. Sem medo de serem tristes ou felizes, apenas conscientes de que, se deixarem de lado o modo fajuto – leia-se, indiferente – de fazer democracia, qualquer que seja o presidente que estiver lá, no comando dessa República sofrida, não vai nos arrastar para o fundo do poço. Desde que, nós, competidores, tenhamos sangue no olhar, e nos deixemos surpreender como o ar da mudança, com o cheiro da renovação de algo, talvez, não tão melhor ou muito pior, mas simplesmente diferente! Desde que não seja ele, e sim nós, o dono do poder!
Eu não quero um futuro com cara de passado, visivelmente cansado da lida política, desgastado em atos contínuos de malhação do Judas, e apegado ao poder como crianças com marshmallow. Me faz lembrar a história do escorpião que promete não picar a rã, mas pica. Essa é a natureza do poder político: depois de mais de uma década, a melodia vira cantilena, e o time começa a perder de boleada, como atestamos na nossa combalida economia na ante-sala da recessão e nas escorraçadas práticas político-eleitorais que voam de jatinhos fretados de lá para cá.
Mais do que dizer para todo mundo que tive Fernando Meirelles só para mim, todo sorrisos na janela do meu velho importado prata, eu precisava dividir um sentimento de que a vida pode ser incrível, se abrirmos a porta do carro e estendermos a mão para o novo, o desconhecido, ainda que ele nos pareça familiar. Por mais que os aliados sejam velhos e o modus operandi, homogêneo, é preciso mudar de endereço, e olhar a vida com outros olhos. Assim me disse o atual presidente da Rodas da Paz, ONG que ajudei a fundar e que não prevê sequer a reeleição em seu estatuto: “Beth, o seu discurso em 2003 é exatamente igual ao nosso hoje!”
O Brasil precisa de pessoas que acreditem na mudança! Que se joguem com coragem e responsabilidade no caminho da renovação, e cobrem dias melhores e práticas mais limpas dos políticos que elegem! Que tenham fé na solidez de nossas instituições e não aceitem a patronagem, o discurso do medo, a apropriação indébita do privado sobre o público, nem o empoderamento sobre a coisa pública por partido nenhum. É preciso devolver o Brasil aos brasileiros, entre eles Fernando Meirelles, a quem “salvei” com devoção, admiração e incredulidade sob a testemunha exclusiva da gigantesca lua que pousava sobre nós na Esplanada dos Ministérios.
Como não acredito que Fernando Meirelles possa ler esse artigo e me convidar para jantar, só me resta acreditar que eu posso fazer das mais bobas esbarradas um encontro que vai mudar a minha vida, ao me mostrar que o Brasil que eu quero é o novo, é o anônimo. É aquele que pode me surpreender e me tirar da mesmice cotidiana e do cansaço com que caminhava para o meu carro tão cansado quanto eu, numa quinta-feira que tinha tudo para ser como uma moça qualquer. Obrigada, Meirelles, por ter salvo você o meu dia! E, quiçá, a minha vida!
* Elizabeth Veloso é jornalista e consultora na área de Comunicação e Telecomunicações.
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