Hoje precisamos retomar as referências para entender o mundo em que vivemos. Uma avalanche de (des)informações que trazem uma visão particular de algo cria em nossas mentes enquadramentos que também são particulares e assim tornam-se plausíveis. Consequentemente, esquecemos o que é realmente correto, bom e justo. Isso, infelizmente, vem acontecendo com a política no Brasil e em outros países. O altíssimo volume de absurdos (fatos, boatos e mentiras) faz com que esqueçamos a que deve servir a política e qual a finalidade de uma sociedade. De fato, faz parte da estratégia de governos como o de Bolsonaro naturalizar o absurdo.
Giuliano da Empoli, em seu muito interessante livro Os Engenheiros do Caos, afirma que plantar o absurdo no espaço público, por meio de radicais sem freios, faz com que ideias antes tidas como inaceitáveis ganhem um espaço de existência, o qual pode ir crescendo com o tempo. Assim, negar o holocausto, acusar judeus e comunistas de culpados pelos males da sociedade acabam por permitir que preconceitos antes inaceitáveis conquistem plausibilidade.
Os “supremacistas” brancos exemplificam o fenômeno nos EUA. O que é um “supremacista”? Envoltos em mil debates secundários e paralelos, podemos esquecer que aquele que advoga a superioridade de uma “raça” e vantagens exclusivas para ela tem nome claro em nosso mundo: racista. A avalanche de absurdos pode nos confundir e ceder algum espaço a um supremacista, embora continuemos crendo que o racismo é inaceitável. Assim está plantado o espaço do absurdo e da dúvida perniciosa.
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No Brasil temos aprendido a esquecer que há milhões de pessoas sem emprego, sem renda. Já naturalizamos que a fome voltou. Cada semáforo do país tornou-se ponto de um ou vários seres humanos sem dignidade mendigando o pão de cada dia. E o governo o que faz? Prometem-nos recuperação em V, em W, põe a culpa na pandemia, nos juros mundo afora. Eu, sinceramente, em tudo que vejo não encontro ações consistentes, permanentes e consequentes para lidar com o problema. A explicação é que para muitos a miséria não é problema – pode até existir, mas é natural.
A Amazônia sofre recordes de desmatamento, sem contar os garimpos ilegais e as mortes de populações nativas. Para tudo o governo faz vista grossa ou mesmo estimula. Esquecemo-nos que as chuvas do Centro-Oeste vão se acabar se a Amazônia colapsar, que as populações locais da Amazônia estão morrendo por violência, fome e doença, que as exportações brasileiras vão sofrer embargos. De quebra, ignoramos também as queimadas recorde no Pantanal. Como podemos esquecer tudo isso? Muitos de nós acreditamos que a vida dá-se numa bolha alimentada pelo supermercado e entretida pelo streaming. A irresponsabilidade das autoridades abafa os problemas e sua discussão, passamos a esquecê-los.
A pandemia trouxe recordes de atraso de aprendizagem e evasão escolar. Podemos contar aos milhões as crianças e adolescentes que perderão, para sempre, chances de um futuro melhor. E o que temos ouvido do governo federal sobre isso? Nada, apenas os ecos dos impropérios da balbúrdia, das promessas do desnorteado homeschooling, da perseguição ao notável Paulo Freire. O sem sentido impera, e acostumamos com ele. Não deveríamos.
PublicidadePor fim, o “negacionismo” das vacinas. A imunologia nos traz dois séculos de ciência para provar que as vacinas funcionam e salvam vidas. Janeiro de 2022 viu três vezes mais crianças internadas que o mesmo mês de 2021, e as mortes dobraram para a faixa etária. Há quem pregue contra a vacina, que exija consentimento constrangedor, indicação médica. Interesses políticos poluem o ambiente com dúvidas descabidas que levam à morte. Negacionismo? Creio que já temos palavra mais exata para isso: assassinato.
Falar em virtude, solidariedade, responsabilidade parece-me que se tornou conversa sem sentido para muita gente. Muitos querem crer que tais assuntos são não apenas maçantes, mas que a realidade que eles encerram pode ser banida do mundo. Se perdemos as referências da realidade e da justiça, alguns nos venderão a mentira que as consequências não existem.
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