Marília César *
Como naquele programa de rádio em que você é convidado a escolher o personagem da semana, eu apontaria o substantivo “ajudadora” como a palavra mais comentada da semana que passou.
A polêmica em torno do nome se deu da seguinte forma: numa fala durante o evento “Mulheres pelo Brasil”, em Natal (RN), no dia 14 de setembro, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, afirmou que “a mulher tem que ser ajudadora do esposo, não é isso? É a gente que aguenta, né? Mas graças a Deus, Deus tem falado muito ao coração do meu marido”. Pouco antes, ela se referiu ao esposo (substantivo mais usual entre as mulheres evangélicas) desta forma: “aqui tem um homem talvez um pouco mais técnico, mas aqui tem uma mulher espiritual. Eu acho que se completa, né?” (Parênteses aqui: ela tomou a liberdade de contrapor o valor “espiritual” a “técnico”, quando na verdade a Bíblia opõe “espiritual” a “carnal”, a característica que o apóstolo Paulo atribui a homens que alimentam “contendas e divisões.”) (I Corintios 3:3)*
No dia seguinte ao pronunciamento de Michelle em Natal, a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, esposa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num comício de campanha eleitoral em Montes Claros (MG), ironizou a fala da primeira-dama, garantindo que jamais será “ajudadora” do marido. “Eu não vou te ajudar não, não vou ser ajudadora. Eu vou estar do seu lado, junto, lutando, para a gente dar de novo o Brasil da esperança que esse povo maravilhoso merece”, disse.
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Numa análise sobre as duas falas, a jornalista e escritora Madeleine Lacsko, em sua coluna no UOL, observou que Michelle lançou “uma expressão conhecidíssima no Brasil que frequenta igreja, quase todo ele, “mulher ajudadora”. Sabe que na mídia pouquíssimos entenderão do que se trata e sabe que a mídia é um meio onde simplificar intelectualmente o evangélico sempre foi prioridade.” Lacsko disse ainda, em comentário no Youtube, que os progressistas acham que “tudo que é crente é imbecil e eles não vão pensar – será que essa palavra ajudadora não tem um outro significado que eu não sei? Não, eles vão falar – evangélico é tudo imbecil, então mulher ajudadora quer dizer que mulher tem que ser submissa ao homem porque eles são contra as feministas. Janja ridicularizou o conceito de mulher auxiliadora bem num momento em que eles estão querendo pelo menos não espantar a mulher evangélica. Simplificou intelectualmente e reduziu uma coisa milenar e profunda e que também é do judaísmo – porque está no Pentateuco e é parte da Torá – ela reduziu isso como se fosse uma coisa de gente burra mesmo.”
Pesquisei bastante sobre o conceito de “mulher ajudadora” para escrever O Grito de Eva, lançado em 2021 pela Thomas Nelson Brasil. Nele, dedico dois capítulos inteiros às interpretações teológicas envolvendo o termo e concordo com a visão de Lacsko de que houve, sim, uma simplificação intelectual da mídia ao divulgar o assunto. Porém, acredito que dificilmente seria diferente, uma vez que a cobertura dos evangélicos na imprensa brasileira é majoritariamente superficial e estereotipada. Falta conhecimento bíblico e histórico sobre os protestantes e falta boa vontade e humildade para compreendê-los em profundidade, o que é uma pena diante do papel cada vez mais contundente desse público nos rumos socioeconômicos e políticos do país.
PublicidadeOutra observação é que, sem perceber, Michelle Bolsonaro defendeu, em sua fala, a visão denominada pelos teólogos como “complementarista” sobre o papel da mulher – a que predomina entre os evangélicos conservadores, enquanto Janja, também sem saber, resumiu a hermenêutica “igualitária”, que é preferida dos mais progressistas.
Pensando em contribuir para a conscientização sobre o tema, compartilho alguns trechos de meu livro, que tratam justamente dessa discussão.
Um exemplo da leitura complementarista – que é a prevalente e, muito possivelmente, a julgar por seus posicionamentos públicos, a defendida por Michelle Bolsonaro, está resumida nesse trecho de um sermão do pastor pentecostal Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, disponível no Youtube.
“A Bíblia diz, em Efésios 5:22, que a mulher tem que ser submissa ao marido. O grande problema em torno desse assunto é que muitos não entendem o real sentido de submissão. Submissão é aceitar a missão do outro. O marido tem o papel de autoridade, isto é, ele é responsável por promoção, provisão, proteção, lei, ordem, coesão e liderança em seu lar. Nesse caso, a mulher precisa aceitar que o marido é o responsável maior pelo lar, e ser sua ajudadora. O casamento é uma relação de troca e reciprocidade, então o homem e a mulher cumprem papéis que se completam e contribuem para uma família saudável.”
Já a hermenêutica menos conhecida é a chamada igualitarista, e gastarei mais tempo apresentando essas vozes mais progressistas ao leitor.
Possivelmente, os dois termos cujos significados são mais debatidos teologicamente quando se estuda os papéis masculino e feminino são “ajudadora idônea” e “o cabeça”. O primeiro aparece no Gênesis, durante a criação da mulher, momento em que, para alguns estudiosos, começaram os problemas. Ou quando, como melhor observa a autora americana Rachel Held Evans, “pela primeira vez o Criador nota um aspecto de sua criação que não é bom. ‘Não é bom que o homem esteja sozinho’, diz Deus. ‘Vou fazer para ele uma auxiliadora idônea’ (Gênesis 2:18)”.
A palavra original, no hebraico, nos ensina Luiz Sayão, é ezer kenegdo — um substantivo masculino que significa ‘o que presta socorro, que auxilia, que salva’. “Não tem a ver com gênero; é o mesmo termo usado naquele Salmo de Davi [121] que diz: ‘O Senhor é o meu socorro.’ Se eu fico doente, o meu médico é meu ezer kenegdo. Não está ali implícito nenhum sentido de inferioridade”, explica.
Rachel Held Evans, em seu livro “A Year of Biblical Womanhood: How a Liberated Woman Found Herself Sitting on Her Roof, Covering Her Head, and Calling Her Husband ‘Master’”, nos informa que ezer aparece vinte e uma vezes no Antigo Testamento — duas vezes em referência à Eva, três vezes em referência a nações para as quais Israel apelou por apoio militar e dezesseis vezes em referência a Deus como o ajudador de Israel. Significa tanto benevolência quanto força, e é um nome popular para meninos judeus tanto na Bíblia quanto nos tempos modernos. Além disso, kenegdo significa literalmente “na frente dele”, sugerindo que o ezer de Gênesis 2 é a combinação perfeita de Adão, o yin com seu yang, a água com seu fogo, o Brad para sua Angelina — você entendeu.
A ideia de auxiliadora, em português, segundo a psicóloga e terapeuta familiar Isabelle Ludovico, “leva à errônea interpretação de um ser subalterno”, leitura que “induz a mulher, de forma unilateral, à submissão em relação ao homem, enquanto somos chamadas, na verdade, a submeter-nos uns aos outros no temor do Senhor”.
“É como se Deus declarasse que a solidão do homem o colocava em perigo de morte”, afirma a psicanalista Karin Kepler Wondracek, que tem um mestrado em teologia. “Vou fazer-lhe uma ezer kenegdo, alguém que poderá olhá-lo nos olhos e com quem poderá se identificar. No original você lê: ‘Que o confronte’. Ela é simultaneamente alguém que o apoia e se contrapõe a ele. Veja como as traduções estão carregadas de patriarcado — porque sempre se lê: ‘Far-lhe-ei uma ajudadora idônea’, o que tem uma conotação de inferioridade”, diz Karin. Karin faz uma observação que me pareceu extraordinária e reveladora: o nome “Eva” só é dado após a queda, o pecado original. Antes, a mulher é apresentada a Adão como sua “Ishá”, a humana, que completa o “Ish”, nome dado a Adão. “A junção dos dois nomes, no hebraico, forma o tetragrama do nome de Deus, YHWH. É um som que se perdeu — pelo medo de invocá-lo: o som de um sopro, de um fôlego —, para me lembrar de que cada vez que eu respiro eu pronuncio o nome de Deus. É esse o profundo mistério que há na união entre um homem e uma mulher.”
[…]
Na visão de Karin Wondracek, o modelo de “cabeça”, ou autoridade, deve ser sempre Jesus Cristo. “Como ele se relaciona com as mulheres? Ele lhes dá autonomia, resgata sua dignidade, ele as tira desse lugar inferior onde elas foram colocadas. Jesus lhes devolve o direito à voz. Veja, a quem ele primeiro revela ser o Messias? A uma samaritana menosprezada. A Maria, irmã de Marta, que escolhe aprender com ele e ficar a seus pés, uma prerrogativa masculina naquela época, ele não manda para a cozinha. Ele diz que ela escolheu a melhor parte, e isso não lhe será tirado. E para Marta, que escolheu servir, ele diz: ‘Não precisa se martirizar por estar servindo; não adote uma posição masoquista; não se faça de vítima. Menos, Marta. Menos.’”
A autora canadense Sarah Bessey escreve: “Durante seu tempo na terra, Jesus subverteu as normas sociais que ditavam como um rabino falava às mulheres, aos ricos, aos poderosos, às donas de casa, às sogras, aos desprezados, às prostitutas, às adúlteras, aos doentes mentais e endemoniados, aos pobres. Ele falou com as mulheres diretamente, e não por meio de lideranças masculinas, como era o padrão da época (e até mesmo de algumas seitas religiosas hoje).”
Sarah observa que a atitude contracultural de Jesus em relação às mulheres o levou a usar uma expressão jamais empregada. Quando Jesus curou a mulher que estava curvada, ele o fez na sinagoga, à vista de todos. Ele a chamou de “filha de Abraão”, o que provavelmente enviou uma onda de choque pela sala. Foi a primeira vez que a frase foi dita. As pessoas só tinham ouvido falar de “filhos de Abraão” — nunca filhas.”
* “Porque ainda sois carnais; pois, havendo entre vós inveja, contendas e dissensões, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens?” (1 Coríntios 3:3).
texto extraído de O Grito de Eva, Thomas Nelson Brasil, SP, 2021, pags. 119-121 e 123-124.
* Marília de Camargo Cesar nasceu em São Paulo, é casada e tem duas filhas. Jornalista, é editora-assistente de projetos especiais do Valor Econômico, maior jornal de economia e negócios do Brasil. É também autora de livros que provocam reflexão nas lideranças evangélicas. Suas obras mais conhecidas são Feridos em nome de Deus, Marina — a vida por uma causa e Entre a cruz e o arco-íris. Artigo publicado originalmente em Observatório Evangélico.
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