Ana Trigo *
Passou despercebido pela grande imprensa a publicação no Diário Oficial da União, no último dia 8 de agosto, da portaria nº 907 que aprova o Planejamento Estratégico Institucional do Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) para os anos de 2023 – 2026. Nela estão previstas ações com a “missão de superar a fome, reduzir a desigualdade social e garantir a dignidade, a inclusão, a proteção socioassistencial às pessoas em situação de vulnerabilidade social”.
Entre as metas anunciadas no anexo IV está a contratação de vagas em comunidades terapêuticas (CTs), ainda sem informação de quantas nem onde serão, já que é necessário lançar edital para habilitar as entidades, também sem data prevista. No texto, o termo “comunidades terapêuticas” não aparece. O que temos é o seguinte:
Meta 4.55 – Ampliar o número de acolhimentos em Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas contratadas pelo Governo Federal, até 2026.
Meta 4.56 – Capacitar pessoas na temática de álcool e outras drogas, até 2026.
Meta 4.57 – Realizar estudos e pesquisas com foco na avaliação da política de acolhimento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas, até 2026.
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Vamos voltar um pouco no tempo, ao começo deste ano. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez que esqueceu a promessa de campanha de apresentar uma política de atenção à dependência química que fosse multidisciplinar e inclusiva e criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, vinculado ao MDS, com o objetivo de “redução da demanda de drogas” e uma verba orçamentária de R$ 273 milhões. A criação do departamento era um pedido antigo de representantes das comunidades terapêuticas e da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas do Congresso Nacional e foi prontamente atendido por Lula.
Como organizações contrárias ao modelo baseado no isolamento, abstinência e religiosidade reclamaram, incluindo o Conselho Nacional de Saúde, o governo federal tratou de mudar o nome da repartição, que passou a se chamar, a partir de maio, de Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas. Até o momento, ao que parece, a mudança aconteceu apenas na denominação. Nada de política intersetorial, multidisciplinar e inclusiva. Apenas mais espaço para as comunidades terapêuticas.
Lembremos que a maioria das CTs existentes no Brasil são vinculadas a algum grupo religioso. Pesquisa feita em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) já apontava que 82% das comunidades terapêuticas pesquisadas eram vinculadas a igrejas ou organizações religiosas, cristãs em sua maioria. E mesmo as entidades que alegaram não ter vinculação religiosa declararam que estimulam a fé em um “ser superior”.
Ter “Deus como tratamento” tem sido um marketing político poderoso no discurso governamental, independente se o governo é de Lula ou de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL). Aqui em São Paulo também. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) anunciou mil novas vagas em CTs. Aliás, foi o Estado de São Paulo, sob a gestão do agora vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que oficializou o modelo religioso de atendimento para dependentes químicos com o Programa Recomeço que agora é replicado por outros gestores, tanto faz se seus governos sejam mais voltados à esquerda ou à direita ou ao centro.
Comunidades terapêuticas com atendimento multidisciplinar e equipe técnica preparada é um luxo que ou não faz parte dos serviços públicos ou são exceção para dependentes químicos sem recursos e que precisam recorrer a programas como o Recomeço, por exemplo. A maioria das casas são geridas por missionários ou missionárias, dedicados a um trabalho entendido como evangelização e que contam com o apoio de voluntários, muitos deles pessoas que querem retribuir o bem que receberam ao serem atendidos pela instituição. É um trabalho feito com coração e fé que, claro, pode apresentar resultados positivos. Mas, quem tem paciência de acompanhar esta coluna já sabe: não podemos nos esquecer que os benefícios acontecem apenas para quem é aberto ao discurso religioso ou para quem se enquadra na moral e crença cristãs.
Assim, o poder público, agora apoiado pela decisão do presidente Lula, vai criando uma rede inadequada de atendimento e se acomodando na busca por uma solução fácil para um problema difícil que é a dependência química. E, de preferência, uma solução barata. Vejamos: o Recomeço paga R$ 1,7 mil/mês por acolhido nas CTs credenciadas. Para se ter uma ideia da dimensão de custos, R$ 1,7 mil é uma diária de uma CT de ponta. Esse valor mal paga a alimentação e a acomodação nas entidades do Recomeço. Como custeará o atendimento multidisciplinar que é previsto na Lei nº 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas até agora sem implementação efetiva? O jeito será continuar apelando para Deus.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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