Algumas das peculiaridades da formação do nosso país como nação talvez ajudem a explicar algumas das nossas mazelas das quais não conseguimos nos desvencilhar por maior que seja o nosso avanço como civilização democrática. Talvez a nossa maior chaga, raiz da corrupção pública endêmica da qual não conseguimos nos livrar seja a mistura do público com o privado. As autoridades brasileiras parecem enxergar a coisa pública a que passam a usufruir por força das suas posições e mandatos como propriedades suas. Como algo que lhes pertence por direito. Que, de preferência, eles não precisem mais tarde devolver ao Estado. Dessa apropriação indébita do público decorrem os demais problemas.
Há alguns aspectos do nosso modelo de colonização e ocupação a partir da chegada dos portugueses que pode explicar isso. O primeiro é a implementação das capitanias hereditárias. Embora Portugal tenha instalado capitanias hereditárias em outras colônias e mesmo com o modelo não tendo dado certo por aqui senão em Pernambuco e São Vicente, o fato é que o Brasil foi dividido em vários imensos latifúndios cuja propriedade foi entregue a uns poucos beneficiados. Tratava-se, assim, de um bem público que Portugal entregava, em troca de algumas taxas e tributos, como se propriedade privada fosse. Em média, cada capitania hereditária tinha 350 quilômetros de largura estendendo-se até a altura do arquipélago de Cabo Verde, 1.580 quilômetros a oeste, conforme determinava o Tratado de Tordesilhas. A amplitude do território brasileiro e a falta de um poder central no começo que promovesse uma comunicação entre as terras ocupadas provavelmente acentuou essa característica.
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Depois, quando a família real deixou Portugal fugindo de Napoleão Bonaparte, o Brasil tornou-se a única colônia a ser sede do próprio império. Desembarcaram no Rio de Janeiro entre 10 mil a 15 mil pessoas junto com a família real. Em um só dia, a população do Rio aumento em cerca de 10%. Para abrigar a turma aqui, palácios e residências foram confiscadas. Em troca, a família real concedeu aos plebeus locais títulos de nobreza. Ou seja, as autoridades brasileiras viraram fidalgas. E, aparentemente, até hoje qualquer um que assuma um posto de destaque na vida pública do país continua se considerando visconde, barão, marquês…
Então, os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) passam a considerar que a nobre tarefa de analisar, aprovar ou rejeitar as contas dos órgãos públicos lhes dá o direito a ter TV a cabo e internet grátis nas suas residências. Grátis, não: pagas com dinheiro público. Parecem, então, julgar que suas casas e apartamentos sejam, assim, pequenos Palácios de Buckingham, e eles nobres integrantes da família Windsor brasileira.
Alguém poderá argumentar que os valores pagos para conceder aos ministros e procuradores do TCU esses mimos seriam pequenos. Mas eles partem da mesma lógica que fez o presidente da Câmara, Arthur Lira, meter a faca no peito do presidente eleito Luiz Inácio Lula na negociação da PEC da Transição.
De acordo com os bastidores, Lula começou a considerar estabelecer um plano B para pagar o Bolsa Família porque o apetite de Arthur Lira foi crescendo a cada momento. No começo da negociação, Lula considerava que poderia obter a boa vontade de Lira caso retirasse qualquer objeção à sua candidatura à reeleição como presidente da Câmara. A PEC passou com facilidade no Senado e começou a patinar na Câmara, porque as reivindicações foram crescendo.
Começaram a entrar na negociação ministérios – Minas e Energia ou Saúde. O comando da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). E a manutenção do poder para determinar para onde iriam os R$ 19 bilhões das emendas do orçamento secreto.
É a mesma lógica da TV a cabo dos ministros do TCU amplificada. Por essa mentalidade, nada menos que R$ 19 bilhões em verbas públicas pertencem a uma parte dos 513 deputados e 81 senadores. Assim como ministérios e empresas públicas. Para atender aos seus interesses, não aos interesses públicos.
Em princípio, o mimo no TCU foi questionado. E o apetite de Lira contido pelas últimas decisões do Supremo Tribunal federal (STF). Mas nada irá de fato mudar no país se essa mentalidade que mistura o público e o privado, que faz com que a autoridade não se sinta servidor público, mas um nobre fidalgo com direito a regalias, não desapareça.
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