“Dona Oxum, a Iyalodê, a líder do lugar, percebendo que seu povo estava cada vez mais necessitado vai ao encontro do rei pedir ajuda. Ela falou, falou, e nada aconteceu. A sábia senhora retornou à sua aldeia, reuniu uma multidão de mulheres e crianças e voltou em busca do que careciam. Diante o palácio começou um sirê cantando e dançando com as crianças sem poupar o rei das suas reinvindicações. Cantaram e dançaram até que conseguiram vencê-lo pelo cansaço recebendo boa parte do que precisavam”
Oxum é a grande mãe princípio e fim da vida e está ligado a fertilidade e a descendência na terra. São muitas as culturas que ainda se entrecruzam produzindo diferenças e semelhanças entre o povo preto no Brasil. Esta é uma condição que nos une e nos fazem inteiras como resultado de uma dinâmica movente da nossa história negra, quando a vida também tem o gosto de morte.
Protagonistas de episódios dramáticos, celebramos entrelaçando as dimensões espirituais com o racional, com aflição do racismo, a ética e nos cultos celebrativos matizados e transculturais onde se mostram também os valores mais encravadas que nos dão vigor e axé.
Estamos em tempo de uma nova ética, uma ética que nos permite a volta ao tempo arcaico com a perspectiva de resgatar o respeito como seres construtores de uma nova identidade política. Como mulheres banhadas pela ancestralidade estamos sempre nos transformando e nos envolvendo com a totalidade do que somos e que geramos.
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Oxum neste momento representa um modelo exemplar de um ser social um ser mítico que faz parte do universo cultural do povo afrodescendente. personagem que exibe valor que podem ser tomados como referência.
Oxum, via de regra é reconhecida pela beleza vaidade e outros atributos que lhe qualifica como mulher símbolo de todos os tempos. Por que não bela e guerreira? Por que não bela diplomata e líder?
PublicidadeEntendemos que cada sociedade inventa e institui determinados significados para sua existência. Significados que orientam e legitimam as práticas sociais e culturais do grupo tanto objetiva como subjetivamente.
Parece que não há dúvida de que as mulheres na África antiga tiveram seu lugar especial. Uma espécie de homologia da conformidade com a natureza como fundante de um comportamento que se configura por uma dinâmica de ser um ser que se põe em movimento através de papéis que se dividem atendendo a dimensões de uma teia imperativa que compõem qualidades primordiais do humano, as qualidades da quase identidade sem perder a perspectiva da complexidade da cotidianidade da vida e do contexto sociocultural.
As rainhas mães africanas exercitavam o poder não só na qualidade de esposas, mas incluindo todos os poderes da administração civil e militar. Registros históricos dão conta de que muitas foram as mulheres guerreiras que se destacaram na defesa de seus territórios.
É claro que a mulher africana é também mostrada como presa dos mais arraigados preconceitos ou como decoração como sugerem imagens de mulheres em voltas em tecidos de luxo ao redor do Rei Daomé ao presidir festas tradicionais. Do mesmo espetáculo participavam também as amazonas mulheres que lutaram nas suas tropas contra invasores colonialistas.
Vale lembrar a presença da rainha Nzinga enfrentando portugueses em Angola mostrando firmeza e dignidade e suas ideias contra portugueses e espanhóis, comportamento guerreiro que chegou até o Brasil com os que fugiam dos Engenhos de Pernambuco e Alagoas.
Considerando a cosmopercepção afro-brasileira a natureza é matéria e espírito e tudo é vivo e sendo a natureza vida e criação é o que define o ser humano participando do encontro com os outros e consigo mesmo.
Na complexidade das religiões afro-brasileiras encontramos exemplos de mulheres mães, líderes, guerreiras espelhadas em divindades femininas. Busca-se a memória africana através da história, dos itans e rituais restaurando o espírito feminino de resistência e axé. As nossas vivências religiosas se confundem com a vida, com a consciência histórica e todas as relações existentes, dos fenômenos da cultura da relação com a ética de uma estética essencial do corpo da mente e dos conhecimentos políticos e sensoriais de vida.
Foi esta cosmopercepção que trouxe para a luta antirracista dos africanos e seus descendentes a história dos jovens que, no dia 21 de março de 1960, marcharam contra a lei do passe, documento pelo qual se controlava a circulação das pessoas, com restrições máximas às pessoas negras, segundo o padrão de desigualdades e hierarquias do regime do Apartheid. Jovens, convocados pelo Congresso Pan-Africano (PAC) haviam reunido cerca de 20 mil pessoas negras em Shaperville, ao sul de Joanesburgo, para demandarem o fim do passe, em manifestação pacífica pela livre circulação. As tropas do Exército, com aviões de guerra e canhões, atiraram contra a multidão, mataram 69 pessoas e cerca de 200 ficaram feridas.
Este não foi o único massacre perpetrado pelo regime racista. Antes, em 16 de Junho de 1976, houve o Massacre de Soweto, bairro negro, assim organizado para ser controlados pelas forças policiais do regime. No caso de Shaperville, cerca de 11 mil pessoas dos Congresso Africano Nacional (ANC) e do PAC foram presas e as duas organizações foram banidas. Muitos sul-africanos foram para o exílio e, de lá, mobilizaram o mundo denunciando o genocídio e o regime de segregação.
A percepção da extensão da imoralidade de Estado e do processo de eliminação do povo da nação pelo Estado, fez com que o massacre de Shaperville internacionalizasse a luta contra o apartheid. Tornou-se referência para as lutas contra o racismo. Está na gênese dos movimentos negros contemporâneos. Derrubou por terra a credibilidade de regimes, como o do Brasil, que operam as desigualdades manipulando o imaginário coletivo, com conceitos como o da democracia racial. Desnudou a prática do uso das forças policiais pelo Estado para o cumprimento de tarefas de eliminação de grupos humanos específicos, como ocorre com jovens negros do Brasil. Shapperville foi a gênese de muitas das principais pautas dos movimentos negros contemporâneos. Mulheres, homens e jovens de todo o mundo foram para as ruas contra o estado racista Sul-africano. No entanto, também contra os apartheids domésticos.
Como o sirê de Oxum, por todo o mundo ouviu-se a voz de mulheres como Miriam Makeba, Sathima Bea Benjamin, Sophia Williams-De Bruyn, Adelaide Tambo e tantas outras lideranças, definidas como “filhas prodígio” pela escritora Lauretta Ngcobo (2012) e frequentemente são chamadas “mães da nação. Com toda a brutalidade, os códigos e complexidades do exílio, Ruth Mmompati, Mavis Nhlapo, Thandi Modise (HASSIM 2004), Ruth First (assassinada em Moçambique com uma carta bomba), como tantas outras latino-americanas e africanas de outras nações, motivaram também seus povos oprimidos que lutavam no país. Foram perfeitas na implementação de estratégias para derrubar o regime, fazendo com que o sistema se tornasse inviável. Atuavam em rede com aquelas mulheres que sobreviviam às retiradas de direitos no país, como Winnie Mandela, a juíza Navanethem Pillay, Albertina “Ma” Sisulu e milhares de outras sobreviventes. Juntas essas heroínas de nossos tempos, muitas vezes invisibilizadas, mobilizaram a comunidade de nações.
Instituiu-se finalmente o Dia Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial pela Resolução A/RES/2142 (XXI) de 1966 da ONU, em memória do genocídio em Shaperville. Em 2022 o tema pelo combate ao racismo é “Vozes pela Ação contra Racismo”. É hora, nesta terra Brasil, de cantarmos e dançarmos com a senhora Oxum, para recriarmos o mundo.
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