No primeiro turno, o tédio. No segundo, o show de horrores. Antes, a pasmaceira de debates chatérrimos. Agora, o vale-tudo dos e-mails falsos, das manipulações e mentiras. A eleição presidencial de 2010 entrará para a história pela sucessão de exemplos pouco edificantes, vindos a toda hora, de todos os lados, com frequência e dimensão que provavelmente superam até mesmo as baixarias da primeira disputa presidencial realizada desde o fim da ditadura militar.
Em 1989, não custa lembrar, Fernando Collor e sua turma chegaram à vitória com uma retórica, literalmente, das trevas. Contra a ameaça de derrota para Lula, procuraram retratá-lo, a princípio, como perigoso revolucionário, coisa que ele nunca foi. Mas, e daí? Se funcionava como arma eleitoral… e assim dava-se o tom no horário eleitoral para nas ruas se verificar uma versão ainda mais radicalizada daquele discurso. Uma vez eleito, Lula acabaria com a propriedade privada, tomaria fazendas, expulsaria famílias de suas casas, repetiam as tropas de choque colloridas, integradas em boa parte por líderes religiosos e segmentos vinculados no passado à defesa do regime militar.
Houve ainda o tristemente célebre depoimento de Miriam Cordeiro, a ex-namorada do então candidato petista que apareceu no horário eleitoral para contar que, uma vez grávida de Lurian, recebeu de Lula um pedido para que a abortasse. A própria Lurian esclareceria depois sempre ter contado muito mais com o carinho e a assistência do pai, que a assumiu como filha, do que com a mãe, de quem era distante. Mas, até se conhecerem os detalhes da coisa, a candidatura do PT sangrou. Em Brasília, distribuíram-se até panfletos anônimos associando o partido à morte de crianças e a ninguém menos que o capeta.
Tanto a propaganda eleitoral quanto essa militância mais exaltada pró-Collor se dirigiam às zonas mais sombrias do eleitorado e da alma humana. Investiam na desinformação, na ignorância, nos preconceitos. Alimentavam-se do medo e da compulsão de nossa espécie em se afirmar pela identificação de contrários. Identificamo-nos, muitas vezes, determinando aquilo que não queremos ser. Apontando aqueles em relação aos quais desejamos nos contrapor. Pelo caminho, digamos, do antipetismo. Ou, mais recentemente, do antitucanismo. Aquele papo: voto na Dilma para não eleger o Serra, ou vice-versa.
Quem é bom observador já terá identificado, a esta altura, várias semelhanças entre as duas disputas. Uma diferença fundamental, porém, pode ser apontada entre aquela eleição e a atual. Em 1989, bem ou mal, Collor e Lula vieram a público com propostas minimamente claras. Este, com o compromisso de enfrentar as desigualdades sociais pela via democrática. O outro, com a promessa de “reconstruir” o Estado nacional numa perspectiva liberal – eliminando privilégios, reduzindo impostos e burocracia e melhorando a vida dos pobres (ou “descamisados”, conforme a simbologia collorida).
Personagem fundamental naquela eleição foi a imprensa, que teve papel-chave na eleição de Collor, numa história maravilhosamente narrada por Mario Sergio Conti no livro Notícias do Planalto.
Modesto corretor de imóveis, cujo diploma de Jornalismo serve apenas para enfeitar a parede do escritório, sinto-me incapaz de relatar a saga da atuação dos meios de comunicação nestas eleições. Mas não para observar, com toda a ênfase, que a mídia está muito longe de cumprir o seu papel nesta disputa presidencial.
Ambiente melhor para o exercício de bom jornalismo não poderia haver. Com a exceção talvez da revista Época, um dos raros grandes veículos que cobriram esta eleição com razoável equilíbrio, pouca importância se deu às sandices com as quais a “mãe do PAC” e o “candidato do bem” brindaram o distinto público. Num espantoso ataque de demagogia e irresponsabilidade, o economista Serra promete estender o Bolsa Família a 27 milhões de famílias – ou seja, a quase 120 milhões de pessoas, ou 60% da população! E que consistência têm os números mágicos de creches e quadras poliesportivas insistentemente repetidos por Dilma? Em quê, como e por que eles se prestariam a melhorar a educação e a qualidade de vida dos brasileiros?
Desprezada a discussão de programas de governo, pelos candidatos e pela mídia, a eleição “do contra” teve o caminho livre para se nutrir das mais sórdidas baixarias e mistificações. Dilma, certamente, foi a maior vítima das correntes caluniadoras da internet, que ora a descrevem como terrorista, imputando-lhe homicídios que não cometeu ao tempo em que arriscou a vida para lutar contra a ditadura; ora como lésbica, outra clara difamação eleitoreira; ora como fantoche de Lula, imagem em nada ratificada pela personalidade forte – e, inclusive, autoritária – da ex-ministra.
Vexames também abundaram do lado dilmista. As idas e vindas nas declarações sobre o aborto são chocantes. O manifesto divulgado para garantir o apoio dos segmentos religiosos mais conservadores é um monumento ao oportunismo eleitoral mais tosco. Não vou me alongar no assunto, mas as nações mais democráticas e civilizadas do mundo há muito compreenderam a necessidade de aceitar a união civil de pessoas do mesmo sexo ou o direito ao aborto – do qual a própria mulher de Serra, com toda a dor própria de quem passa por experiência semelhante, já lançou mão no passado, conforme depoimento que ela deu a ex-alunas, que confirmaram tudo para a Folha de S. Paulo.
Um pedaço mais complicado da guerra aberta entre dilmistas e serristas é a corrupção. Serra quer fazer crer que é a encarnação “do bem”, em contraposição aos corruptos do PT e do governo Lula. Como se sabe, do mensalão aos atos recentes de Erenice e sua parentalha, não falta material para ilustrar a tese da campanha do PSDB. Mas a súbita notoriedade de Paulo Vieira de Souza, engenheiro ligado ao tucanato paulista sobre o qual pesam numerosas suspeitas, traz à lembrança que, desde o pouco investigado episódio da compra de votos na aprovação da emenda da reeleição, a atual oposição ao governo petista está longe de ser constituída por uma horda de santos.
Chato é que a mídia, que poderia iluminar os fatos e facilitar as decisões dos eleitores, termina às vezes por obscurecê-los. Será que o neofamoso Paulo Preto é o único exemplo possível de vulnerabilidade ética dos longos anos de domínio tucano em São Paulo? Ou o que tem faltado é a imprensa investigar os sucessivos governos do PSDB paulista com o mesmo ímpeto com que se dedica à arte de lancetar os trambiques patrocinados no poder pelo PT? No episódio da bolinha de papel e de um segundo objeto voador, até agora não identificado, arremessados no Rio contra Serra, mil vozes assomaram na imprensa para condenar Lula por ter tratado o episódio como uma farsa à la Rojas. O pito foi merecido, dadas a precipitação do presidente e a condenável atitude dos militantes dilmistas que cercaram Serra. Mas nenhuma dessas vozes se ergueu contra a óbvia supervalorização eleitoreira do caso. A precária imagem gravada por celular não esclarece se Serra foi atingido por um rolo de fita crepe ou por bolinho de adesivos, mas torna patente que foi um objeto de pequena dimensão – jamais a peça “de mais de dois quilos” invocada pelo demo-tucanato para anunciar a interrupção da campanha. De ridículo em ridículo, só nos resta torcer para que os eleitores tenham a sabedoria que até agora faltou aos protagonistas destas eleições.
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