Ciência e tecnologia no combate à fome e às desigualdades sociais. Depois de quatro anos em que a ciência foi negada e relegada a segundo plano, o novo governo Lula planeja dar novo destaque ao setor, tornando-o motor impulsionador para o desenvolvimento das suas políticas mais importantes. O Congresso em Foco teve acesso à íntegra do relatório final do Grupo de Trabalho de Ciência e Tecnologia que atuou na transição. O relatório é a base do trabalho que agora será desenvolvido pela ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos.
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O princípio da transversalidade, filosofia a partir da qual se estimula que as diversas áreas do governo atuam em conjunto, é a base principal da ideia contida nos planos para ciência e tecnologia. Assim, a ideia é que os centros produtores de ciência e tecnologia do país – universidades, institutos de pesquisa, etc – trabalhem no sentido de criar ferramentas, métodos e fórmulas para ajudar o país na solução dos seus maiores problemas.
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“Nações mais desenvolvidas têm no avanço da pesquisa e inovação as bases para a construção de uma sociedade mais justa e responsável e de uma economia do conhecimento”, diz o texto do relatório, já na apresentação das suas 84 páginas.
“Alguns dos grandes desafios do Brasil, apontados no programa da chapa Lula-Alckmin, como a eliminação da fome, que atinge milhões de brasileiros, a redução do desemprego, a melhoria da educação em todos os níveis, e a preservação do meio ambiente dependem de soluções que devem estar articuladas com a ciência e a tecnologia. Área na qual o país tem um grande potencial de pesquisadores, universidades, instituições de pesquisa e tecnologia e setores inovadores”, considera o grupo de trabalho.
Para tanto, a equipe imagina que haverá um grande desafio pela frente. O primeiro passo é a reconstrução de uma área que, na concepção dos autores do relatório, foi “desmantelada” pelo governo anterior. Há primeiro a necessidade de recomposição orçamentária. Depois, a necessidade mesmo de recriação dos espaços dentro do Ministério da Ciência e Tecnologia e o retorno da participação da sociedade organizada aos conselhos e órgãos de decisão do setor.
“É necessário recompor e ampliar o financiamento de CT&I [Ciência, Tecnologia e Inovação], recuperando e ampliando o orçamento do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação] e das agências de fomento federais, destacadamente os recursos próprios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) devem ser liberados na sua totalidade para o fomento de atividades de CT&I” diz o texto.
O texto destaca setores de tecnologia considerados estratégicos: biotecnologia, nanotecnologia, fármacos, semicondutores, materiais estratégicos, manufatura avançada, telecomunicações com tecnologia 5G, infraestruturas de TI, computação quântica, software livre, produção de alimentos, complexo industrial da saúde, energia e economia solidária.
“Estimular a pesquisa, desenvolvimento e inovação não pode ser um movimento dissociado do apoio a projetos de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação em empresas e na sociedade”, diz o texto. “Os principais instrumentos para estas ações seriam a subvenção econômica e a cooperação com universidades, centros de pesquisa e instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICTs)”.
“Outro elemento constitutivo da organização da ciência nacional é a participação da sociedade”, considera o relatório. “Entretanto, o decreto 9759/2019 extinguiu muitos comitês e comissões e tolheu a participação social”. Assim, o grupo de trabalho recomenda modificações para aumentar a participação da sociedade no Conselho de Ciência e Tecnologia (CCT) e no Conselho Diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). E sugere a reativação da Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia (CMCH) e do Comitê de Popularização da Ciência e da Tecnologia (CPCT). “Por fim chama a atenção para a necessidade urgente de rever a Câmara de Inovação, criada sem qualquer participação social”.
Orçamento
“A situação orçamentária do MCTI, como demonstrada no relatório 1 e reafirmada na seção 7 deste relatório, se degradou rapidamente nos últimos anos”, alerta o relatório. “Comparado com 2015, a proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2023 prevê que o orçamento do próximo ano será 40,68% menor do que o do último ano de gestão plena da presidenta Dilma Rousseff”.
Segundo o relatório, o setor perdeu R$ 32 bilhões entre 2016 e 2022, transferidos para a reserva de contingência. Esses valores eram recursos de tributos e encargos que deveriam ter financiado projetos de desenvolvimento científico e tecnológico para o avanço do Brasil, principalmente por meio do FNDCT. “Estes recursos poderiam ter financiado centenas de laboratórios de pesquisa e de projetos inovadores, além de custear a pesquisa de vacinas, de aperfeiçoamento de cultivares, de projetos espaciais e petrolíferos, da construção naval, de biotecnologia, de prospecção mineral, de tecnologia da informação e tantos outros campos estratégicos onde o Brasil tem plena capacidade de progredir tecnologicamente”, enumera o texto.
O Ministério da Ciência e Tecnologia conseguiu recompor em torno de R$ 5 bilhões para o setor. Os valores estão previstos na PLOA. Haverá um acréscimo de 40% no valor das bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o que soma R$ 403 milhões. Para a recuperação dos institutos de pesquisa, estão previstos R$ 150 milhões. Para Difusão e Popularização da Ciência, R$ 50 milhões. Para a eliminação completa da reserva de contingência que o governo anterior tinha imposto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia, R$ 4,2 bilhões.
“A tarefa da próxima gestão deve ter como ação prioritária a reconstrução de um sistema que garanta uma ciência dinâmica e flexível, uma inovação criativa e um desenvolvimento tecnológico soberano”, diz o texto do grupo de transição. “É urgente vencermos o negacionismo, através da valorização da produção de conhecimento nacional”.
Fake news
“Um elemento inédito se somou aos desafios já postos. O contexto da disputa pelas narrativas políticas apresenta um novo desafio estrutural, ou seja, a manipulação da opinião pública pela produção e disseminação de fake news”, alerta o relatório. Esse desafio foi enfrentado fortemente na pandemia de covid-19, quando o próprio presidente Jair Bolsonaro e seu governo contribuíram para lançar dúvidas sobre a eficácia das vacinas e na promoção de medicamentos sem eficácia comprovada. “Nesse contexto, o negacionismo e o obscurantismo impõem o descrédito sobre os resultados da produção científica”, observa.
Estão ainda entre as prioridades levantadas no texto tornar o setor de Ciência, Tecnologia e Inovação protagonista na promoção da diversidade e da igualdade racial.
Outro tema que deve ser redefinido são as políticas de conectividade, com ênfase na conectividade das escolas, aponta o texto. Dentro dos recursos derivados do Edital para o 5G, há aproximadamente R$ 5,2 bilhões livres para investimentos em conectividade até 2024, dos quais a maior parte está reservada para a conexão de escolas públicas, segundo o relatório. Adicionalmente, há R$ 3,5 bilhões da Lei 14.172/21, que já foram distribuídos aos estados, e também podem ser mobilizados para investimentos em projetos de conexão de escolas. Nesse quadro de oportunidade, a legislação também impõe uma obrigação de conexão de todas as escolas públicas do País à internet, em velocidades adequadas, até 2024 .
Meio ambiente
A proteção do meio ambiente é outro ponto de destaque. “Quanto à vertente do clima, é imprescindível traçar ações de mitigação, com propostas de desenvolvimento de novas tecnologias e capacitação de comunidades”. O texto propõe ainda a criação de um programa específico sobre o uso da água, “pois tende a ser um problema com a mudança do clima e também com o desflorestamento”.
O relatório também propõe aceleração do Programa Espacial Brasileiro (PEB). O texto destaca que pelo menos o governo Bolsonaro completou projetos de satélites iniciados em governos anteriores, que resultaram no lançamento dos satélites CBERS-4A em 2019 e Amazonia-1 em 2021. Com relação ao primeiro, apesar de concluído, diz o relatório que foi “alvo de constantes ataques por parte do governo que sinalizou de forma veemente a descontinuidade do programa” por se tratar de uma cooperação com a China. “O segundo, é o único satélite de observação da terra completamente projetado, integrado, testado e operado pelo Brasil, mas que também não tem previsão de continuidade”, destaca. “Novos projetos do mesmo porte não foram propostos ou autorizados, o que resultou em uma situação de estagnação tanto na indústria quanto das organizações públicas como o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]”.
“No setor de lançadores e bases de lançamento, grandes expectativas foram criadas no início do atual governo em razão da assinatura de Acordo de Salvaguardas com os Estados Unidos (AST), instrumento cuja negociação foi retomada no governo Dilma. No entanto, as expectativas de que atividades de natureza comercial emergiriam em Alcântara – basicamente a de operações de lançamento por empresas estrangeiras – ainda não se materializaram, assim como o desenvolvimento de um lançador nacional, que também não cumpriu o cronograma de desenvolvimento esperado”.
“No programa nuclear, também estratégico para a soberania do Brasil, importante infraestrutura de P&D e de produção de radioisótopos para medicina nuclear é o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB). Embora tenha sido considerado um projeto estruturante, seu projeto executivo esteja pronto, e o sítio para sua instalação em Iperó, São Paulo, esteja devidamente aprovado e licenciado, o início de construção do RMB vem sendo postergado há vários anos, por falta de recursos orçamentários”.
Isolamento
O relatório do grupo de trabalho aponta ainda que o Brasil nos últimos anos acabou se isolando “na arena decisória internacional em CT&I, em razão da adoção de agendas negacionistas”. A participação do Brasil em grandes colaborações internacionais (CERN, telescópios etc.) foi seriamente comprometida, com atrasos em pagamentos e exclusão da presença brasileira nessas inciativas. “O País observou enorme fuga de cérebros para o exterior, o que representa grave perda dos nossos melhores talentos, nos quais a sociedade brasileira fez grande investimento público em qualificação e que, por absoluta falta de oportunidades e perspectivas, não tiveram outra opção senão ir trabalhar no exterior”, diz o texto.
Este trabalho recebeu apoio do Instituto Serrapilheira (Número do processo Serra – R-2206-41148)
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