Foi uma agradável surpresa abrir os principais jornais do país e encontrar uma tempestade de artigos, entrevistas e matérias sobre as jornadas cívicas de junho de 2013. Tiveram o mérito de reavivar a memória e a reflexão sobre fatos importantíssimos ocorridos no Brasil e que estavam um tanto esquecidos. Parece que uma eternidade nos separa dos acontecimentos de dez anos atrás. Tanta coisa ocorreu. Eleições presidenciais, a maior recessão da história, impeachment, Lava Jato e a crise da democracia representativa tradicional brasileira.
Lembremos. As jornadas de 2013 foram desencadeadas contra o aumento de 20 centavos nas passagens do transporte coletivo de São Paulo. As manifestações de rua começaram a se avolumar. De início com foco e direção definidos. De repente, num fenômeno social inédito na história brasileira, um rastilho de pólvora espalhou a chama por todo o território nacional. A insatisfação social armazenada e reprimida explodiu nas ruas e os 20 centavos perderam o protagonismo em troca de uma agenda difusa de insatisfação com a qualidade dos serviços públicos e com a corrupção.
Não havia palanque, nem dirigentes do movimento. Era um movimento espontâneo e o partido ou organização que tentasse se apropriar era rejeitado. Diferentemente dos grandes movimentos cívicos anteriores como as lutas pela Anistia, pelas Diretas Já e pelo Impeachment de Collor, não havia uma pauta clara de reivindicações, uma estratégia de mobilização e uma coordenação centralizada. Qual uma panela de pressão que explode, as manifestações convocadas pelas nascentes redes sociais, eram espontâneas e dispersas.
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Foram manifestações impressionantes predominantemente de jovens, que depois envolveram suas famílias, de classe média urbana – é ilusão pensar que os trabalhadores e cidadãos pobres foram ativos no movimento. O Brasil se preparava para receber a Copa do Mundo em 2014, com grandes investimentos em construção e reforma de estádios de futebol. Criou-se o mote: “Queremos educação, saúde e transporte padrão FIFA”. O 7 x 1 para a Alemanha parece uma vingança do destino. Não havia, para usar o jargão, uma bandeira de luta unificadora. Cada um ia para a rua com sua faixa ou cartaz pessoal, manifestando suas angústias, esperanças e insatisfações. O caráter difuso das jornadas ficou registrado em minha memória através da foto publicada de um cartaz alegórico nas mãos de um manifestante: “Só saio da rua quando o Kinder Ovo custar 1 real”.
A corrupção era outro foco. Lembremos que o julgamento do mensalão bateu recordes de audiência, em 2011 e 2012, através da TV Justiça, popularizando figuras como o ministro do STF Joaquim Barbosa.
Infelizmente, os Black Blocks mascarados se infiltraram, promoveram quebra-quebras e deram fim às lindas, cidadãs e poéticas jornadas de junho de 2013.
PublicidadeO que me incomodou em grande parte das análises foi um “tour de force” para conectar, em ligação mecânica e inverídica, as jornadas de 2013 com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. As jornadas surpreenderam a todos, revelando uma grave insatisfação e um desconforto geral com o sistema político, ou seja, com o que ficaria conhecido como “velha política”. Mas a relação de causalidade termina aí.
Esquecem alguns que em 2014, Aécio Neves quase ganhou de Dilma Rousseff. Que em 2015 entramos na maior recessão de nossa história. Que o impeachment de Dilma reavivou os movimentos de rua, com outra natureza e dinâmica, surgindo movimentos como MBL, Vem Pra Rua e Patriotas pela Intervenção Militar, alimentando a polarização política, mas com objetivos e convicções não homogêneos. Ainda assim, o PSDB obteve, em 2016, a sua maior vitória eleitoral no plano municipal. Foram 803 prefeituras conquistadas e o PSDB teve a maior votação entre todos os partidos, 17,6 milhões de votos. O PMDB também obteve excelente resultado, conquistando 1.038 prefeituras. O PT foi o grande derrotado vendo cair em 60% o número de prefeituras e de votos. Até este momento, Bolsonaro tinha apenas 8% das intenções de voto para a presidência da República (Datafolha).
Outro fato, as redes sociais e os aplicativos de mensagens só passaram a ter papel político relevante a partir da campanha do impeachment em 2016 e depois nas eleições gerais de 2018. Em 2014, tinham papel periférico. As fakes news eleitorais eram difundidas por call centers telefônicos, cartazes e folhetos apócrifos, e-mails e sutilmente pela própria TV.
No primeiro semestre de 2017, vieram a público as delações premiadas da Lava Jato, amplamente divulgadas pela TV e tiveram lugar os fatos envolvendo o empresário Joesley Batista. De outubro de 2016 a setembro de 2018, foram presos – justa ou injustamente, observando ou não os ritos legais – importantes líderes políticos, deputados e ex-governadores. Em abril de 2018, Lula foi preso. As estruturas políticas tradicionais de esquerda e de centro foram confrontadas e o desgaste político foi enorme. Vivemos a crise do governo Temer, que vinha produzindo importantes reformas. Foi aí que Bolsonaro, como outsider, em nome de uma “nova política” alcança o patamar de 16%. O sprint final para a vitória só se deu após o monstruoso atentado, durante a própria campanha, no segundo semestre de 2018.
O ponto que gostaria de realçar é que as jornadas cívicas de 2013, que completam agora dez anos, foram um evento histórico da maior importância, sendo a maior manifestação de massas espontânea e difusa que se tem notícia no Brasil, revelando um mal estar social profundo com o sistema político vigente, que não soube fazer a leitura correta e a necessária mudança de postura. Mas, os resultados das eleições gerais de 2018, não tenho dúvidas, têm muito mais a ver com os acontecimentos havidos no interregno entre as jornadas de 2013 e a eleição de Bolsonaro
Fora isso: Viva o espírito cidadão e participativo presente nas memoráveis jornadas de 2018!
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