Passado quase um mês do início oficial da campanha eleitoral, o volume de ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre desinformação e pedidos de retirada de conteúdos da rede está bem abaixo do esperado anteriormente. Até agora, foram apenas três os principais casos julgados pelo Tribunal. Outros pedidos foram indeferidos porque a Justiça Eleitoral entendeu que os casos se alinhavam ao pleno exercício da liberdade de expressão e opinião do eleitor. Nos órgãos regionais, as ações também não são numerosas. Ainda assim, decisões proferidas preocupam, pois sinalizam ameaças à liberdade de expressão.
Durante o Seminário Eleições e Liberdade de Expressão, realizado na última terça-feira, 11, em São Paulo, o ministro do TSE, Carlos Bastide Horbach, apontou que havia a expectativa de que as chamadas fake news fossem as “vedetes das eleições”. “Seriam os temas que iriam encher os gabinetes do TSE. Entretanto, acabou que a ‘montanha pariu um rato’. Objetivamente o volume de representações ajuizadas no TSE do dia 16 [de agosto] para cá basicamente dizem respeito ao horário eleitoral gratuito de rádio e televisão. Pouquíssimas são as que atacam posts nas redes sociais e pouquíssimos destes discutem aspectos de fake news”, avaliou.
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A preocupação motivou, ao longo do último ano, a produção de seminários, reuniões, cartilhas e, inclusive, a instituição, por meio da Portaria nº 949/2017, do Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições, órgão que passou a ser responsável por formular propostas para disciplinar o processo eleitoral no que se refere à disseminação de desinformação e ao uso das plataformas de redes sociais. O trabalho resultou na Resolução nº 23.551/2017, que regulamenta a propaganda eleitoral e trata, entre outras coisas, da propaganda na internet e da remoção de conteúdo por ordem judicial. No artigo 33, a norma dispõe que “[…] a atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos divulgados na internet deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático”.
A orientação do TSE para o pleito de 2018, portanto, aponta que a atuação da Justiça Eleitoral deve ser limitada e pontual, de forma que não interfira no direito à liberdade de expressão e opinião política dos cidadãos e das cidadãs nas redes. As respostas judiciais, nesse sentido, devem ser menos pela remoção do conteúdo e mais pelo direito de resposta do ofendido. “A remoção de conteúdo é uma medida excepcional e extrema. As decisões têm sido mais pela concessão de direitos de resposta e menos pela remoção”, sintetizou Horbach no seminário.
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Entre a orientação e a prática, contudo, há uma diferença marcante, como se viu já no primeiro caso envolvendo desinformação que chegou aos tribunais. A ação foi movida pela Rede Sustentabilidade e pedia a retirada do ar de conteúdos que ligavam a então pré-candidata Marina Silva (Rede) à operação Lava Jato. A decisão do TSE, proferida pelo ministro Sergio Banhos, no dia 7 de junho, determinou que o Facebook removesse as publicações em 48 horas.
PublicidadeOutra ação foi proposta pela campanha do candidato à Presidência da República Guilherme Boulos (PSOL/PCB) e pedia a retirada das páginas do YouTube e do Facebook de Diego Rox. O pedido derivou da circulação do vídeo “Debate na Rede TV”, em que o youtuber afirmava que o candidato era terrorista. Na Justiça, Boulos conseguiu duas decisões liminares junto ao TSE, que definiram a retirada do vídeo em um prazo de 48 horas. O descumprimento da ordem judicial gerou novo pedido.
O caso mais recente envolveu Jair Bolsonaro (PSL), que pediu a remoção da rede de imagens contendo frases atribuídas a ele. As montagens propagavam que o candidato à presidência teria dito, em entrevista, que não precisaria dos votos de mulheres, negros e membros da comunidade LGBT. O próprio ministro Carlos Bastide Horbach aceitou o argumento da defesa, que alegou que as publicações veiculavam informação falsa, e determinou a remoção do conteúdo.
Parece evidente que as remoções foram utilizadas diante de informação caluniosa ou difamatória sobre os/a candidatos/a, portanto de crimes contra a honra previstos no Código Penal. Isso confirma o que a sociedade civil brasileira já vinha alertando: as leis já existentes no país são suficientes para abordar também as infrações que ocorrem no âmbito da rede, não sendo necessária a criação de novas regras.
Quanto às sanções, vale lembrar que organismos internacionais, a exemplo da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão, órgão da Comissão Interamericana de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), recomendam que aquelas infrações sejam tratadas exclusivamente na esfera civil, sobretudo, quando se trata de acusações contra a prática jornalística. O entendimento do órgão é que o tratamento criminal de calúnia, injúria ou difamação pode representar potencial risco à liberdade de expressão.
Embora as decisões do TSE não violem a liberdade de expressão, há posicionamentos que devem ser observados e problematizados. Na ação movida pela Rede Sustentabilidade, por exemplo, além do conteúdo difamatório que ofendia a imagem política da pré-candidata, a decisão de Sergio Banhos foi justificada também pelo fato de o perfil no Facebook não ser atribuído a uma pessoa, mas ao nome genérico “Partido Anti-PT”. Banhos usou, portanto, a tese da vedação ao anonimato para embasar a remoção do conteúdo.
A Constituição Federal fixa que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Por outro lado, a própria Resolução Eleitoral detalha no artigo 33, parágrafo 2º, que “[…] a ausência de identificação imediata do usuário responsável pela divulgação do conteúdo não constitui circunstância suficiente para o deferimento do pedido de remoção de conteúdo da internet”. Acrescenta ainda que o anonimato só poderá ser considerado depois de tomadas as medidas previstas no Marco Civil da Internet (MCI), Lei nº 12.965/2014, para a disponibilização dos dados do usuário.
Em função disso, o TSE obrigou a plataforma a fornecer, no prazo de até 10 dias, registros de acessos a uma das postagens e dados sobre a origem da página responsável pelas publicações, além de dados pessoais de seu criador e dos administradores, a fim de identificar o responsável pelo conteúdo. Para estar em conformidade com o Marco Civil, o argumento do anonimato como justificativa para a retirada do conteúdo deveria, portanto, ter aguardado a disponibilização dos dados pela plataforma.
Além disso, a questão do anonimato de perfis é controversa. Recentemente, o tema foi objeto de discussão, em função da decisão do Facebook de derrubar 196 páginas e 87 perfis da plataforma. Além de reivindicar o processo estabelecido pelo MCI, há organizações que defendem o anonimato na interface pública das plataformas como mecanismo para prevenir a exposição e a violência contra grupos vulnerabilizados, como pessoas trans.
Tribunais Regionais
Se as decisões do TSE têm sido cautelosas no que diz respeito à retirada de conteúdos das redes, o mesmo não se pode afirmar dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs). Ao que parece, os TREs não têm se orientado diretamente pelo art. 33 da Resolução nº 23.551/2017, autorizando a retirada de conteúdos que configuram “guerra de opiniões” e não infrações.
Em agosto, o TRE-MT obrigou o Facebook a excluir quatro postagens patrocinadas relacionadas ao candidato ao Senado Nilson Leitão (PSDB). A defesa alegou que as notícias contidas nos textos são antigas e, portanto, não corresponderiam à atualidade.
Ora, desabonar um candidato ou governos por ações cometidas anteriormente, ainda que sejam fortes e penosas, não pode ser encarado como ofensa à honra, como parecem querer alguns operadores do direito. Críticas políticas que rememorem, inclusive, atos e discursos do passado não podem ser enquadradas como calúnia e difamação. Trazer à memória dos eleitores fatos da vida pública pregressa do candidato faz parte do debate eleitoral e beneficia a democracia – sobretudo em um país em que o acesso mais amplo à informação produzida por fontes diversas é recente.
No Paraná, uma decisão do Juizado Especial Cível de Palmas retirou do ar três páginas do Facebook mantidas pelo jornalista Rodrigo Ribeiro e que faziam críticas diretas ao prefeito Kosmos Nicolaou (DEM). Embora não tenha sido uma decisão da Justiça Eleitoral, vale mencionar o caso porque, na decisão pela remoção, o juiz Eduardo Vianna argumentou que as páginas não apresentavam definição de autoria – eram, portanto, anônimas. Conforme já mencionado, o anonimato em si não pode ser justificativa exclusiva para a derrubada de uma página. Diante do fato, o jornalista entrou com pedido para ser incluído no processo, como autor das páginas.
Em Goiás, o TRE-GO fechou parceria com a Secretaria de Segurança Pública (SSP-GO) para constituir um grupo de trabalho responsável por analisar o conjunto das notícias falsas e fazer o acompanhamento de todo o conteúdo veiculado durante o processo eleitoral. Segundo informação da Superintendência de Inteligência da SSP-GO, a checagem de fatos é feita pela apuração do conteúdo real ou por meio de “fontes confiáveis” e o objetivo é observar se determinado fato é verdadeiro ou não.
A possibilidade de um órgão como a Secretaria de Segurança Pública ou mesmo órgãos do sistema de Justiça definir o que é verdadeiro ou falso já é bastante controversa. Aliás, essa foi uma das principais críticas feitas pelas organizações da sociedade civil ao Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições do TSE, quando de sua criação por Gilmar Mendes, em dezembro de 2017. Havia, naquela ocasião, debate sobre a possibilidade de criação, pelo TSE, de uma plataforma de checagem de notícias, a exemplo do que vem sendo feito por alguns grandes jornais e por agências criadas para este fim – ações que já foram analisadas neste espaço. A iniciativa, totalmente descabida e inapropriada às prerrogativas do órgão, foi desestimulada e abortada.
O acordo firmado entre o TRE-GO e a SSP-GO abre um perigoso precedente para a censura. Os critérios de checagem são vagos, baseados em conceitos poucos verificáveis como a ideia de “fontes confiáveis” e, sobretudo, coloca a questão da informação/desinformação como um problema de segurança pública, ou seja, como caso de polícia.
Essa abordagem também foi criticada publicamente quando da criação do referido Conselho Consultivo pelo TSE, por contar, em sua composição, com representantes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Ministério da Defesa – comando maior do Exército Brasileiro – e da Polícia Federal – órgãos que não possuem competência técnica para atuar no combate à desinformação nem imparcialidade política para tal exercício. Além disso, a participação deles obviamente gera desconfiança entre aqueles que atuam na defesa da liberdade de expressão e que alertam sobre as práticas de vigilância de corporações e Estados no âmbito da rede.
Informação e Democracia
Não é demais lembrar que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do TSE Luiz Fux falou reiteradas vezes que as eleições poderiam ser anuladas se ficasse comprovado que notícias falsas beneficiaram um candidato a ponto de garantir sua vitória. Um exagero que demonstra como a própria forma de abordar o problema deve ser bastante cuidadosa, para que não seja usada para legitimar o desrespeito à decisão popular.
Ainda que notícias fraudulentas que circulam na internet ou mesmo que são produzidas pelos veículos tradicionais tenham um impacto substantivo na vida das pessoas e fragilizem bastante nossa pouco consolidada democracia, a prática de retirar conteúdos durante o período eleitoral não parece contribuir com a perspectiva do combate à desinformação. Ao contrário, pode acabar se tornando uma barreira à busca por informações da vida política do candidato e outras associadas à campanha ou mesmo restringir a sátira política. À exceção dos casos de calúnia, difamação, injúria e outros crimes previstos em nosso ordenamento jurídico.
Faltam pouco mais de 20 dias para o primeiro turno das eleições e muita água ainda deve rolar embaixo dessa ponte. Sabemos, pela experiência de 2014, que conteúdos caluniosos, explicitamente manipulados e ofensivos à honra circulam ainda mais às vésperas do pleito e, especialmente, durante o segundo turno das disputas majoritárias, quando a polarização se intensifica. Embora acordo assinado pelo TSE e alguns partidos políticos para a não proliferação de notícias falsas tenha sido firmado, buscando um compromisso ético dos partidos para a garantia de um ambiente eleitoral imune à desinformação, ainda precisaremos aguardar os próximos dias para saber se ele será, de fato, respeitado.
Do mesmo modo, não é possível afirmar que o baixo volume de ações sobre fake news junto ao TSE será mantido, mas é importante que a orientação para uma mínima interferência no processo seja garantida e levada a sério pelas ramificações regionais do órgão. Não devemos, sob a justificativa de combater a desinformação, direcionar nossos esforços ao oposto extremo, o que conformaria um ambiente de censura. É preciso equilibrar o pleno exercício da liberdade de expressão com a garantia dos outros direitos também diante das condições específicas do processo eleitoral. Pelo bem do acesso à informação e da nossa democracia.
* Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela USP, defensora dos Direitos Humanos e coordenadora licenciada do Intervozes; atualmente candidata a deputada estadual no Estado de São Paulo.
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