No Rio Grande do Sul, funciona com dificuldades a Ceitec, única fabricante de semicondutores do Brasil. Dificuldades que foram acrescidas com a política de desmonte da ciência aplicada pelo governo Jair Bolsonaro. Fundada em 2008, em um convênio do governo federal com o governo do Rio Grande do Sul, a estatal tinha como objetivo desenvolver tecnologia própria brasileira em uma área essencial que hoje está presente em praticamente tudo o que se utiliza, de documentos de identidade a automóveis ou aviões: os microchips e componentes eletrônicos similares. A Ceitec só não foi liquidada pelo governo Bolsonaro porque o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu o processo.
Recuperar a Ceitec e fazê-la agora funcionar é uma das tarefas de reconstrução da ciência brasileira que está nos planos do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. “Há ampla necessidade de fato de reconstrução de um setor que foi desmantelado pelo governo Bolsonaro. Um setor que será preciso reconstruir”, explica ao Congresso em Foco o ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2005 e 2010 nos governos anteriores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Sergio Rezende.
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O caso da Ceitec é um dos exemplos que Rezende traz do desinteresse do atual governo em investir em ciência e tecnologias próprias para o país. A Ceitec foi fundada no Rio Grande do Sul para aproveitar o reconhecido potencial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia Universidade Católica do estado (PUC-RS) na formação de profissionais em microeletrônica. A ideia era que o próprio governo federal fosse no início grande cliente da companhia como forma de impulsioná-la até que ganhasse de fato capacidade de competição.
Uma das áreas em que tal clientela seria possível seria nos bancos estatais, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, para a implantação dos chips dos cartões bancários. “Em vez de comprar da Ceitec, o Banco do Brasil e a Caixa preferiram no atual governo importar os chips do exterior. Situações desse tipo tornaram a empresa deficitária, embora não seja um grande déficit. Mas suficiente para que o governo atual achasse justificável fazer a liquidação da empresa. Felizmente, o TCU barrou, nos dando tempo agora de recuperá-la”, diz Rezende.
Claro, não será tarefa fácil. Diante do desmonte, profissionais que trabalhavam na empresa acabaram migrando para outras companhias internacionais. Houve uma delas que até instalou uma filial no Rio Grande do Sul justamente com o propósito de atrair os cérebros que estavam na Ceitec. “O processo de reversão da Ceitec é uma dessas coisas fundamentais que teremos de fazer”, diz o ex-ministro.
O Inpe e outros institutos de volta
Os quatro anos de um governo que, por suas ações e inações, negou a ciência e seus benefícios obrigarão uma reconstrução não somente de prioridades e investimentos, mas mesmo de gestão. Sergio Rezende cita como outro exemplo o que aconteceu no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em 2019, o físico e engenheiro Ricardo Galvão foi demitido da diretoria do Inpe somente por fazer seu trabalho. O presidente Jair Bolsonaro irritou-se com o fato de o Inpe demonstrar que o desmatamento estava crescendo na Amazônia. E Galvão foi, então, exonerado.
O problema é que, na sua substituição, o governo Bolsonaro não seguiu os parâmetros que até então norteavam a escolha. A direção do Inpe era escolhida a partir da publicação de um edital para o qual qualquer pessoa poderia se inscrever. Desse processo de seleção, uma comissão escolhia uma listra tríplice, e dessa lista o ministro da Ciência e Tecnologia escolhia o nome. Por tradição, vinha sendo escolhido o primeiro nome da lista.
O próprio Galvão chegou assim ao Inpe. Ele não era servidor do instituto. Aderiu ao edital e acabou selecionado. Clezio de Nardin, o nome que substituiu Galvão, foi escolhido pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, sem passar por um processo semelhante. “O retorno de tais critérios de escolha terá de ser retomado”, explica Rezende.
Transição
Os nomes que comporão a equipe de transição na área de ciência e tecnologia ainda não foram escolhidos. O nome mais cotado, porém, para vir a coordenar a transição no setor é Luiz Antônio Elias. Ele foi secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia quando Sergio Rezende era ministro.
Elias é o coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (Napp) de Ciência, Tecnologia e Inovação da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT. Os Napp são os braços criados na fundação para a formulação de políticas públicas nos diferentes setores. E, no caso da ciência e tecnologia, são os diagnósticos e propostas ali formulados que nortearão os planos do novo governo para o setor. Por conta desse trabalho, Elias é o nome mais cotado para coordenar o trabalho de transição.
O trabalho formulado pelo Napp sugere a reconstrução do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNTCI), que o grupo considera ter sido desmantelado a partir do governo Michel Temer, mas especialmente após Bolsonaro.
“É urgente uma radical mudança nas prioridades políticas nacionais, entre as quais deverá estar a política de CT&I [Ciência, Tecnologia e Inovação], avalia o documento do Napp.
Leia aqui o documento na íntegra:
Segundo a proposta, o incremento em ciência, tecnologia e inovação é parte fundamental da retomada do desenvolvimento econômico do país. O documento coloca nos mesmos patamares de necessidade de retomada: “democracia política, desenvolvimento econômico, educacional, científico e tecnológico, igualdade social, redução das assimetrias reginais, pluralidade cultural”.
“Base indispensável”
“A pesquisa científica independente, produzida em nossas universidades e institutos de pesquisa, constitui a base indispensável para a formação das cadeias de conhecimento que geram capacidade tecnológica”, considera o documento. “É o pilar que sustenta a formação de recursos humanos capacitados tanto para promover um salto na inovação tecnológica na economia nacional como para permitir eficácia e engenhosidade na operação das atividades econômicas e sociais no país”, continua.
O documento entende que o desenvolvimento científico e tecnológico acaba trazendo ao país maior soberania e menos dependência, o que o torna “um instrumento importante para avançar novamente rumo a uma sociedade mais igualitária, com melhores condições de vida para todos e para construir um país mais democrático, mais soberano e competitivo no cenário internacional”.
E, nessa tarefa, entende que o Estado precisa ser o indutor desse desenvolvimento. “Para acelerar a transformação produtiva, o Estado deve atuar executando diretamente por meio das empresas estatais ou como indutor do aumento do investimento privado em inovação, promovendo a colaboração entre instituições de pesquisa e empresas ou cooperativas”, considera. Um plano estratégico precisa, então, ser traçado para promover essa indução.
O grupo trabalhará para estudar uma forma de retomada dos níveis de investimento no setor, que vieram caindo ao longo dos anos. Nesse ponto, considera urgente liberar os recursos que foram contingenciados do Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia (FNDCT). “Da mesma forma, é preciso recompor a integralidade dos recursos do Fundo Social do Pré-sal para Educação, Saúde e CTI, estratégico para avançarmos no desenvolvimento tecnológico na cadeia de óleo e gás. O financiamento do desenvolvimento científico e tecnológico deve, adicionalmente, mobilizar recursos orçamentários de outros ministérios, fundos das agências reguladoras e recursos de governos estaduais”, diz o plano.
O Napp sugere a criação de um plano decenal de ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia. A meta é atingir um patamar de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em investimentos de pesquisa e desenvolvimento no país nos próximos quatro anos.
Este trabalho recebeu apoio do Instituto Serrapilheira (Número do processo Serra – R-2206-41148)
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