Vinicius do Valle*
No famoso quadro Independência ou Morte, do artista paraibano Pedro Américo de Figueredo e Melo, que retrata a proclamação da independência, o povo brasileiro é representado pela figura de um carreiro que, descalço, transportando bois, assiste sem compreender Dom Pedro decretar a independência do Brasil junto à sua comitiva de homens da alta sociedade brasileira.
200 anos depois, estamos assistindo o presidente da República transformar a data comemorativa da independência em ato político de campanha, misturando história do Brasil, aparato estatal e Forças Armadas com disputa eleitoral. Neste triste episódio, Bolsonaro conseguiu apoio de empresários próximos, setores do agronegócio e, também, de alguns dos pastores evangélicos de grandes igrejas. Esses setores teriam mobilizado recursos e transportado militantes aos principais atos do país. No entanto, ainda que líderes evangélicos estejam por trás dos atos, é importante entender que não estamos perante atos evangélicos. E isso, não porque não temos a maioria dos evangélicos nessas manifestações – não dá para esperar a maioria absoluta de nenhum segmento social em manifestações de rua. A questão é outra: quem foi às manifestações bolsonaristas foi um tipo muito específico de evangélico. Um tipo, pouco representativo, aliás, dos evangélicos do país.
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Tradicionalmente, as mobilizações bolsonaristas são compostas por um índice maior de brancos e de pessoas de renda alta, em comparação com a média da população brasileira. O evangélico mobilizado por pastores para as manifestações tem esse perfil. Ele é mais mobilizado e está em igrejas mais centrais na cidade, próximo aos pastores das direções das denominações, que são mais midiáticos e muito mais atuantes politicamente que a média de pastores.
Olhando o quadro geral, o perfil do evangélico brasileiro é outro. Estamos falando do segmento religioso com maior proporção de famílias de baixa renda no país. A maior parte mora nas periferias das grandes cidades. Ainda que, segundo as pesquisas, a maior parte desse segmento esteja apoiando Bolsonaro, essas mesmas pesquisas mostram que, entre as famílias evangélicas de baixa renda, há um empate técnico entre Lula e Bolsonaro. Mais do que isso: pesquisas quantitativas e qualitativas estão indicando que esses evangélicos não estão satisfeitos com a excessiva politização dos cultos. Essa semana tivemos, em uma igreja em Goiás, um fiel ferido por arma de fogo, vítima de uma discussão política no templo religioso. Também assistimos a um vídeo de um culto em uma igreja Batista, em que um fiel grita em reprovação a apresentação de candidatos no meio da cerimônia religiosa.
A maior parte dos evangélicos está como o carreiro do quadro de Pedro Américo de Figueredo e Melo: trabalhando duro para viver, enquanto autoridades ganham notoriedade e pensam que falam em seu nome.
Publicidade*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Vinicius do Valle é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico, e atua na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e em outras instituições, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos, além de realizar pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).
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