Luís Cláudio Cicci
Repórter free lancer
A passagem de 2021 para 2022 em Uberlândia (MG) tem motivo para ser uma festa diferente, inédita, mais silenciosa, talvez até tensa. Quem curte o barulho de explosões nas comemorações poderá achar a noite um tanto sem graça, decepcionante. Mas os animais, os recém-nascidos e os doentes terão uma noite de maior sossego, que não deixará de ser iluminada. Depois da aprovação de três leis pela Câmara Municipal nos últimos dez anos para impedir primeiro a queima e, recentemente, a venda de fogos de artifícios que façam barulho nos limites territoriais onde vivem mais de 700 mil pessoas, o Ministério Público de Minas Gerais cobrou ação da Política Militar.
O contingente de soldados que irá às ruas para rondas durante o próximo réveillon terá missão extra a cumprir: as equipes a bordo das viaturas coloridas de branco, azul, amarelo e vermelho lidarão com a tarefa de listar os endereços onde for feita a soltura de fogos que impliquem a geração de barulho. Caso isso ocorra em uma área pública, o responsável ouvirá dos policiais a recomendação para que pare, sob o risco de ser formalmente acusado de desobediência à ordem legal de funcionário público, o que, pelo Código Penal, pode render detenção de até seis meses e multa.
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Década de ineficácia
De acordo com lei municipal em vigor desde o início deste ano, 2021, o desrespeito à proibição da queima de fogos de artifício, bombas, buscapés, morteiros ou outros fogos e artefatos pirotécnicos com estouros e estampidos pode render multa que varia de R$ 117 a R$ 821. Essa norma aperfeiçoou o Código de Postura de Uberlândia, lei válida desde 2011, e que trazia a mesma vedação, mas sem citar toda a área do município – minúcia jurídica que pode servir para justificar uma década de ineficácia.
Mas o cerco contra a zoeira que incomoda especialmente os uberlandenses mais idosos, recém-nascidos, portadores de transtornos psiquiátricas e donos de animais domésticos ganhou reforço jurídico na Câmara Municipal, numa das últimas votações em plenário deste ano. Está à espera de sanção do prefeito Odelmo Leão (Progressistas) proposição aprovada pelos vereadores para proibir também a venda desse tipo de artefatos pirotécnicos no município onde vive a segunda maior população de Minas Gerais.
A cidade do Triângulo Mineiro, distante 450 quilômetros de Brasília, nesta semana entre o Natal e o Ano Novo, se junta, na prática, à cruzada contra os fogos de artifício. Essa luta já conta com o poder público da capital Belo Horizonte; de Juiz de Fora, no mesmo Estado; e do Estado de São Paulo, lugares onde, neste ano, normas passaram a vale contra a venda e o uso de artefatos pirotécnicos. E Uberlândia entra nessa história por ação da Curadoria do Meio Ambiente, Patrimônio Histórico e Cultural, Habitação e Urbanismo do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).
Sem brincadeira
No último dia 28, um ofício com a assinatura do promotor de Justiça Breno Linhares Lintz solicita ao comandante do 17º Batalhão da Polícia Militar, em Uberlândia, que informe à tropa da proibição da queima de fogos e outros artefatos pirotécnicos no município. E pede o registro numa única lista, em um documento conhecido como registro de eventos de defesa social (Reds), de todos os endereços onde for constatado o desrespeito à vedação prevista no artigo 115 do Código de Postura do município – a expectativa é de que os policiais vão escrever bastante.
No dia seguinte, a quarta-feira, Lintz deu força à primeira determinação e se dirigiu, usando uma rede social onde conta com 4,8 mil seguidores, a todos os munícipes para incentivar a delação dos fogueteiros. O promotor informa no comunicado que qualquer pessoa pode fazer denúncia anônima e sigilosa por meio de gravação por celular da soltura de fogos com estampido e alerta que proporá ação civil pública vinculada a cada endereço, com pedido de indenização podendo variar de R$ 10 mil a R$ 100 mil, conforme o número de pessoas envolvidas – isso além da cobrança da multa de até R$ 821.
“Se o povo acha que vai ter brincadeira, está enganado”, alerta Lintz, que atua na curadoria desde meados de 2019. O promotor conta que, neste mês, recebeu 248 manifestações com reclamações sobre os transtornos causados pelas explosões dos fogos de artifício. “Metade tem a ver com o sofrimento causado aos animais”, diz. “Também já presenciei o desespero de pais de autistas nesses momentos de comemoração e sei de famílias que se afastam dos centros urbanos, que vão para estradas, locais ermos, a fim de poupar seus filhos do barulho.”
Tradição
Como resistência às grandes redes varejistas, se espalham pelos 77 bairros de Uberlândia as vendinhas, milhares de mercadinhos, os armazéns típicos do interior do Brasil, às vezes com uma só porta de acesso, balcões e prateleiras de madeira gasta e mercadorias expostas nas calçadas ou dependuradas pelas paredes. Os tais artefatos pirotécnicos são itens presentes no modesto portfólio desses pontos comerciais, desde os inocentes traques aos rojões de três tiros, comuns nas festas juninas, folias de reis e celebração da conquista de campeonatos de futebol.
Em uma esquina de avenida larga e movimentada do Bairro Nossa Senhora Aparecida, com duas pistas que seguem no mesmo sentido, fica a Vandão Fogos, altamente especializada no ramo. A empresa familiar completará, em 2022, seis décadas de funcionamento e conta no atendimento aos clientes com gente da terceira geração. Neste período de festas, o melhor do ano para as vendas, o movimento no balcão e a entrega de encomendas foram justificativas para o responsável pela loja recusar três pedidos de entrevista.
“O que não é de barulho, a gente está vendendo, é só produto de baixo ruído, sem estrondo”, explica, por telefone, uma balconista da Vandão Fogos. Durante a ligação, o barulho de fundo sugeria um dia corrido e dava pista de que a tradição da celebração do réveillon com fogos de artifício deve perdurar à revelia da lei. “A gente faz o alerta, avisa, diz do risco de denúncia e fala, quando a pessoa pede um artefato específico, que só vai poder usar em chácara, em fazenda.” Essa orientação não leva em conta que, em Uberlândia, a proibição vale inclusive para a zona rural.
Delações
Para lidar com um hábito arraigado, que pode ser definido como tradição, resignação, paciência, determinação e persistência são a solução. “Estou ciente que não conseguirei acabar imediatamente, mas quero melhorar a ambientação quanto à soltura de fogos de artifício e imagino já, neste ano, uma redução de 80%”, explica Lintz. “E faço um alerta aos comerciantes: quem concorre para o crime, está sujeito, já agora, às mesmas sanções e pretendo usar a isenção das punições como argumento para estimular delações e, assim, chegar nos vendedores.”
Sobre o critério para definir em Uberlândia quais estampidos podem justificar uma denúncia anônima ou a inclusão de um endereço no reds pelos policiais militares, o promotor considera a subjetividade e recorre ao discernimento de cada um. “Vai pelo bom senso, pela análise das reclamações, ou seja, não é possível comparar o barulho de um traque com a explosão de um rojão ou o estampido de um foguete que, desnecessariamente, no meu entender, além do efeito visual, traz junto um estrondo”, explica.
Tramita no Senado Federal proposição para proibir, em todo território nacional, a fabricação, a importação, a comercialização e a utilização de fogos de artificio que gerem poluição sonora. O projeto de lei (PL) 439/2021, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato (PT/ES), espera desde agosto pela votação em plenário. A fabricação de produtos em desacordo com a proposta poderá render reclusão de até quatro anos, enquanto o seu uso seria punido com a detenção de até seis meses e multa. A casa também avalia o PL 2.130/2019, que estabelece limites de emissão sonora para fogos de artifício.