Por Christiane Jalles e Jorge Chaloub*
As eleições no estado do Rio de Janeiro são há décadas atravessadas por uma tensão entre a dimensão local e a nacional. Grande cena da política brasileira nos tempos de capital federal, a cidade assim como o estado carregam uma dimensão ambivalente, dividida entre o desejo de permanecer sendo o centro das grandes disputas e o reconhecimento de uma manifesta perda de importância, que a leva a concentrar seus debates em questões mais limitadas às fronteiras fluminenses. Após a ditadura civil-militar, as lideranças cariocas e fluminenses passaram a ter evidente perfil local. Com exceção de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, predominaram personagens que privilegiavam as particularidades do estado que representavam.
Primeiro presidente após 1945 com sólida carreira político-eleitoral no Rio de Janeiro, Bolsonaro liderou um processo de nacionalização do debate e das candidaturas do Rio de Janeiro. Em 2018, não apenas alcançou, a partir de temas nacionais, uma significativa bancada composta de nomes pouco conhecidos do eleitorado do Rio, como elegeu um candidato praticamente desconhecido, Wilson Witzel, munido com a força da sua imagem e da sua rede subterrânea de mensagens nas redes sociais.
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Governador içado ao poder pelo impeachment de Witzel, Cláudio Castro não deve sua ampla vitória no 1º turno, com 58,67% dos votos e o maior número de votos em 91 dos 92 municípios do estado, apenas à máquina bolsonarista. Como dito em uma análise anterior do Observatório das Eleições, Castro teve como trunfo os recursos financeiros gerados pela rolagem da dívida estadual com a inserção do Rio de Janeiro no programa de recuperação fiscal dos recursos da venda de empresas estatais, como a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae).
Em meio a frequentes denúncias de corrupção, o caixa cheio foi utilizado para consolidar uma ampla aliança, que incluía velhas lideranças da política fluminense, como Washington Reis, Brazão e Eduardo Cunha, e contava com o apoio da maior parte dos prefeitos e parlamentares do estado. Mesmo líderes de partidos de oposição, como Washington Quaquá, do Partido dos Trabalhadores (PT), não pouparam elogios públicos a Castro.
A vitória de Castro representou também uma dura derrota para Marcelo Freixo, liderança mais popular da esquerda no estado. Com 27,38% dos votos válidos, ele teve mais de 1,5 milhões de votos a menos que Lula, candidato à Presidência da sua coligação, e não conseguiu aumentar sensivelmente a votação do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que computou quase quatro vezes menos votos que o PT e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) nas eleições para deputados estaduais e federais. Sua campanha, por fim, também não operou como palanque eficiente do candidato presidencial petista, que perdeu por quase 1 milhão de votos no Rio de Janeiro.
PublicidadeNas disputas dos mandatos para o Senado, para a Câmara dos Deputados e para a Assembleia Legislativa, os candidatos eleitos, de forma geral, realizaram um movimento pendular em que ora os problemas locais eram enfatizados, ora a dinâmica, as palavras de ordem e as performances eram espelhadas do plano nacional. A nacionalização do debate produziu um resultado ambíguo que, de um lado, mostrou a força da ultradireita e seus satélites; por outro lado, alimentou o campo progressista e a esquerda fluminense, que conquistou importantes vitórias nos parlamentos.
Com dez candidatos, a disputa para a vaga fluminense ao Senado foi acirrada e teve forte componente nacional. Nela, os movimentos dos atores durante a campanha foram mais importantes do que o resultado em si, uma vez que este confirmou o favoritismo de Romário (PL), que foi reeleito com 29,06% dos votos válidos, tendo sido seguido de perto por Alessandro Molon (PSB), com 21, 06% dos votos válidos.
Toda campanha gravitou em torno do presidente Jair Bolsonaro, marcada ou pela busca do seu apoio, por parte dos candidatos de sua base, ou pelo esforço de se diferenciar dele, caso das candidaturas de oposição. Romário, Daniel Silveira (PTB) e Clarissa Garotinho (União Brasil) disputaram para saber quem teria o apoio público do presidente. Apesar do ex-jogador liderar as pesquisas de opinião, o escolhido de Jair Bolsonaro foi Silveira, cuja candidatura tinha sido indeferida pela Justiça Eleitoral, mas que concorreu por ter impetrado um recurso judicial.
Tal apoio resultou em uma luta fratricida que fez, por um lado, Clarissa Garotinho apresentar-se cada vez mais alinhada às pautas da ultradireita, tendo, inclusive, defendido como bandeira de sua campanha a castração química para estupradores. Por outro lado, Romário dissociou-se da imagem do presidente, trazendo para primeiro plano a figura do também candidato à reeleição, o governador Cláudio Castro (PL) e, com isso, direcionando sua campanha para problemas do estado fluminense.
A vitória de Romário e, especialmente, as derrotas de Daniel Silveira (que acabou em terceiro lugar) e Clarissa (que ficou na quarta posição) são bastante expressivas para a compreensão desse campo político no Rio de Janeiro, tanto que o ex-jogador faz suspense se declarará apoio a Bolsonaro no segundo turno da eleição presidencial.
Do lado da esquerda, os partidos também não conseguiram fechar candidatura única ao Senado. Diante disso, o segundo lugar de Alessandro Molon tem sabor agridoce, pois, se por um lado, mostrou que derrotar os candidatos ligados a Jair Bolsonaro era possível, de outro ,explicitou o erro que foi ter fragmentado os esforços, o que impediu a vitória do campo progressista no estado.
Os resultados nas eleições proporcionais (Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa) também são exemplares de como a tensão local/nacional deita raízes no Rio de Janeiro. Terceiro colégio eleitoral do país, o estado tem 46 cadeiras na Câmara dos Deputados. O Partido Liberal (PL), ao qual está filiado o presidente Jair Bolsonaro, conquistou 11 delas, fazendo assim a maior bancada do Rio de Janeiro. Com 2/3 de deputados federais reeleitos, as novidades na bancada fluminense espelham a força dos políticos tradicionais e/ou ligados a Bolsonaro como, por exemplo, a eleição do general Pazuello (PL), com a segunda maior votação do estado – embora seja preciso lembrar que o voto militar no Rio de Janeiro sempre foi significativo. Mas também explicita a força dos partidos de esquerda, que elegeram mais candidatos do que no último pleito, puxados por PT e PSOL, cada um com cinco cadeiras. O Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), liderado por Rodrigo Maia, e o Novo não elegeram nenhum deputado federal. Já o prefeito da cidade do Rio, Eduardo Paes (PSD), conseguiu eleger três ex-secretários seus, embora outros três não tenham tido sucesso.
Na Alerj, houve uma maior renovação, com 32 das 70 cadeiras ocupadas por novos parlamentares, muitos deles ligados a Jair Bolsonaro. Além disso, a distribuição das cadeiras mostra a força dos principais partidos: o PL, com 17 eleitos, fez a maior bancada. É seguido pela União Brasil com 8, PT com 7, PSD com 6 e PSOL com 5. Importante destacar o crescimento da bancada feminina. Foram eleitas 15 candidatas (em 2010, haviam sido eleitas 12 mulheres), entre elas a primeira transsexual, Dani Balbi (PCdoB). Também foi eleita uma mulher autodeclarada indígena, Índia Armelau (PL), e uma mulher autodeclarada asiática, Elika Takimoto (PT). O panorama dá indícios de que a nacionalização das pautas locais também influiu na escolha dos eleitores para a Alerj.
Os grandes temas nacionais têm, contudo, peso distinto no estado. Se o debate sobre segurança pública é importante em todos os locais, no Rio ele ocupou o centro da campanha, em dinâmica que levou candidaturas mais à esquerda a assumirem parte do discurso da ultradireita. Trata-se de um indício de que, ao menos nas eleições para governador e senador, a direita e a ultradireita foram capazes de dar o tom do embate. Nas eleições para a Câmara Federal e Alerj, a diversidade de pontos de vista foi maior, mesmo que seja significativo o número de eleitos com um discurso de tintas policialescas. Talvez venha das vozes dissonantes eleitas para o legislativo uma possível renovação da esquerda fluminense, pautada não apenas em nomes, mas sobretudo na capacidade de produzir novos consensos políticos.
*Christiane Jalles é doutora em Ciência Política (IUPERJ) e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora. Foi uma das coordenadoras da terceira atualização do Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930 (DHBB) e da primeira edição do Dicionário da política republicana do Rio de Janeiro. É autora, entre outros, de O bom combate: Gustavo Corção na imprensa brasileira (1953-1976), de 2015.
* Jorge Chaloub é doutor em Ciência Política, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, e Diretor da Regional Sudeste da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.
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