Foram dois anos longe das salas de cinema por causa da pandemia. Três doses de vacina depois, máscara N95 no rosto e sem cadeiras próximas ocupadas, matei a saudade ontem (sábado, 5) ao ver Eduardo e Mônica.
O filme transpõe para a tela a famosa canção de Renato Russo, que é inspirada – com grande liberdade – na história de amor vivida pelo atual embaixador brasileiro no México, Fernando Estellita Lins de Salvo Coimbra, e a artista plástica Leonice (Leo) de Araújo Coimbra.
Leo e Fernando têm pouco a ver com a Mônica e o Eduardo da letra da música e menos ainda com os personagens encarnados por Alice Braga e Gabriel Leone. Ele, desde jovem, revelou-se um cara intelectualizado e sofisticado. Formou-se em Antropologia, jamais fez Engenharia. Ela não se formou em Medicina e é pouco mais velha que o marido, de quem está junto há 42 anos. Tiveram uma filha, e não gêmeos. Fernando conheceu, sim, o pai. É filho do ex-embaixador Marcos Coimbra, que foi ministro do ex-presidente Fernando Collor (do qual era cunhado) e faleceu em 2013.
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As diferenças são detalhes. O fundamental é que, tanto quanto Eduardo e Mônica, Fernando e Leo eram e são muito diferentes. A forte união que entre eles se estabeleceu não se explica por afinidades. Ou melhor, não se explica, como sugerem os célebres versos iniciais do solitário trovador brasiliense:
“Quem um dia não irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração
E quem me irá dizer que não existe razão”
(confira a letra completa do final deste post)
Várias coisas tornam Eduardo e Mônica irresistível, ao menos pra mim, que moro há mais de 30 anos em Brasília e amo tanto esta cidade. Pra começar, o carisma da dupla protagonista. Não surpreende a bela atuação de Alice Braga, atriz excepcional e que já mostrou o seu talento em vários trabalhos anteriores, inclusive em produções estrangeiras. Surpresa mesmo causa Gabriel Leone, ao mesmo tempo verossímil e encantador ao protagonizar a difícil passagem da adolescência para a idade adulta.
PublicidadeDepois, tem esse outro lado de Brasília, que vai além da capital do poder e da maldade, a imagem impregnada no imaginário de muitos brasileiros. A cena principal, que o noticiário costuma dedicar aos poderosos, fica por conta de jovens anônimos, que sonham, sofrem, cantam, dançam, bebem e, acima de tudo, amam e querem amar.
São suaves as referências ao lado mais triste dos anos 1980, a década em que o Brasil pôs fim a uma ditadura militar que entregou um país em grave crise econômica após cumprir o script completo próprio das autocracias: perseguiu a inteligência, torturou e matou pessoas, censurou a arte e o conhecimento, inverteu a ordem e a moral a pretexto de defender a pátria e os bons valores.
Na obra dirigida por René Sampaio, o avô de Eduardo faz o contraponto reacionário à energia transformadora daqueles anos encharcados de fé em um futuro melhor. Seu Bira, personagem vivido pelo sempre magnífico Otávio Augusto, é um militar da reserva, daqueles que – Deus meu! – acreditam que, se alguém foi de alguma forma punido pelo regime de 1984/1985, é porque mereceu. No mínimo, era “comunista”.
É um filme sobre uma música e grande parte do seu charme está na trilha sonora, previsível, mas nem por isso menos charmosa. Curiosamente, o momento mais emocionante rola quando Eduardo resolve impressionar Mônica com uma canção brega e grita que precisa muito dela naquela noite porque ali, em meio a uma festa tipicamente brasiliense, os dois talvez comecem algo que pode durar pra sempre. Ou, para reproduzir o trecho original de “Total eclipse of the heart”, que a galesa Bonnie Tyler imortalizou em um single lançado em 1983:
“I really need you tonight
Forever’s gonna start tonight”
Gravado em 2018 e programado para estrear em 2020, Eduardo e Mônica teve o lançamento adiado várias vezes por causa da pandemia. Chega agora como um bafejo de ternura e de alto astral sobre uma nação novamente espezinhada pela ignorância e pela truculência. Não posso deixar de saudar a felicidade do roteiro, produto da criação coletiva de Matheus Souza, Jessica Candal, Claudia Souto, Michele Frantz e Gabriel Bortolini.
Pra concluir, aí vão alguns vídeos de canções que aparecem no filme:
1. “Total eclipse of the heart”, com Bonnie Tyler (1983):
2. “Tainted love”, com Soft Cell (1981)
3. “Should I stay or should I go”, The Clash (1982)
4. “Bichos escrotos”, Titãs (1986)
5. “Private Idaho”, do B-52’s (1980)
7. “Eduardo e Mônica”, que Renato Russo compôs em 1981, na versão lançada em 1986 pela Legião Urbana
Letra de “Eduardo e Mônica”:
Quem um dia não irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração
E quem me irá dizer que não existe razão
Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque
No outro canto da cidade
Como eles disseram
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
Um carinha do cursinho do Eduardo que disse
Que tem uma festa legal e a gente quer se divertir
Festa estranha, com gente esquisita
Eu não tô legal, não aguento mais birita
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto só pensava em ir pra casa
É quase duas e eu vou me ferrar
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver um filme do Godard
Se encontraram então no Parque da Cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo
Eduardo e Mônica era nada parecido
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis
Ela fazia medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês
Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus
De Van Gogh e dos Mutantes
De Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô
Ela falava coisas sobre o Planalto Central
Também magia e meditação
E o Eduardo ainda tava no esquema
Escola, cinema, clube, televisão
E, mesmo com tudo diferente
Veio meio de repente
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia
Como tinha de ser
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia
Teatro e artesanato e foram viajar
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar
E ela se formou no mesmo mês
Em que ele passou no vestibular
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos muitas vezes depois
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa
Que nem feijão com arroz
Construíram uma casa uns dois anos atrás
Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão
Só que nessas férias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo
Tá de recuperação ah-ah-ah
E quem um dia irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração
E quem irá dizer
Que não existe razão