A defesa dos direitos humanos na radiodifusão, como garante a Constituição Federal de 1988, tem uma importante voz institucional na Paraíba, José Godoy Bezerra de Souza, procurador regional adjunto dos Direitos do Cidadão no Ministério Público Federal (MPF/PB).
Um caso que Godoy tem acompanhado e atuado é o do apresentador Sikêra Júnior, um dos campões de violação de direitos humanos na televisão brasileira. O membro do MPF cumpriu papel fundamental, por exemplo, no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e na Ação Civil Pública, em 2018 e 2021, respectivamente, contra o apresentador. Pelo pedido do MPF, Sikêra deveria ser condenado por discurso de ódio às mulheres e por dano moral coletivo e individual. E o procurador da República anuncia: nos próximos dias, o MPF vai apresentar uma nova denúncia contra o apresentador, desta vez por racismo.
Godoy é também representante da 6ª câmara de coordenação e revisão do MPF (responsável pela atuação em temas relativos a indígenas e minorias) na Paraíba, mestrando em direitos humanos e políticas públicas no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e atua na temática de direitos humanos no MPF desde 2008, nos estados de Alagoas e Paraíba. Também exerceu os cargos delegado (Polícia Civil da Paraíba) e de advogado da União.
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Nesta entrevista, Godoy defende o respeito aos direitos humanos como um princípio a ser seguido nos meios de comunicação e sugere uma legislação que responsabilize e puna as empresas violadoras, preservando, assim, a democracia.
A entrevista foi conduzida por Mabel Dias, que é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba, associada ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e observadora credenciada no Observatório Paraibano de Jornalismo.
Mabel Dias – Em 2015, movimentos sociais e procuradores da República, em São Paulo, criaram o Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (FINDAC) para coibir as violações aos direitos humanos na mídia corporativa, em particular nos programas policialescos exibidos na TV e no rádio. Esse projeto chegou à Paraíba e o senhor é um dos procuradores na Paraíba que “abraçou” a causa. Como o FINDAC funciona e qual a sua importância para barrar estas violações na mídia?
José Godoy – O FINDAC é uma ideia muito boa, e o trabalho realizado pelo FINDAC é muito importante porque ele congrega vários órgãos e entidades interessadas, que têm uma preocupação com o direito fundamental e constitucional à comunicação. Esses órgãos se juntam para promover o debate, oficinas, seminários, sobtretudo, esclarecer a importância desse direito, e paralelo a isso, é um órgão que recebe, tem acesso a conhecimentos de violações desses direitos e procura os órgãos competentes que têm atribuição para atuar, entre esses órgãos está o Ministério Público. Mas a sua atuação não se resume ao Ministério Público. No front, seja litigando ou chamando algum órgão que violou direitos humanos, também atuam a Defensoria do Estado, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público do Estado. Ou seja, é um órgão que faz um advocay pelo direito à comunicação, promovendo, junto a estas entidades, que tem esta vocação para defender este direito, promovem, esclarecem, levam à população a importância desse direito, a importância desse debate público. É uma parceria importantíssima para a sociedade, para as entidades e para o Ministério Público.
MD – Quais os principais casos de violações na mídia paraibana que o MPF/PB atuou e quais os resultados obtidos a partir destas atuações?
JG – Os principais casos que atuamos começam com o Intervozes nos trazendo as violações de direitos humanos, do direito à comunicação, de rádios, de concessões públicas, concedidas a parlamentares e seus familiares. Essa atuação resultou em, pelo menos, três ações civis públicas para que essas concessões fossem cassadas, pois foram concedidas ilegalmente, de forma inconstitucional. Inclusive, uma delas, sendo julgada procedente.
Também atuamos no caso aqui na Paraíba, na minha atuação, quando assumi as funções na PRDC na Capital, em João Pessoa, que foi o caso do apresentador de televisão Sikêra Júnior, onde ele agrediu duas mulheres de maneira direta, dizendo que mulher tinha que tratar e cortar as unhas, que mulheres que não pintavam as unhas eram sebosas, entre outras aberrações, e isso resultou em um TAC, em que a TV se retratou e cedeu seu espaço para uma campanha educativa muito importante.
Posteriormente, entramos com uma Ação Civil Pública por danos morais e materiais contra o apresentador. Também atuamos no caso do falecido apresentador de programa de rádio, que tinha participação em programa de rádio, chamado Anacleto Reinaldo, em que ele agrediu os índigenas da Paraíba, na 105 FM, que resultou em um TAC, em que a rádio fez uma retratação e cedeu também o espaço para uma campanha educativa sobre os povos indígenas. Anterior à minha atuação, tem uma Ação Civil Pública pelo Dr. Duciran, que envolve a TV Correio. Atualmente, temos outros casos que estão em análise e quase praticamente todos eles chegam ao Ministério Público pelo FINDAC.
MD – Nesse ano de 2022, pesquisa realizada pelo Intervozes identificou o aumento do número de candidaturas a cargos políticos de apresentadores e repórteres de programas policialescos, notórios violadores de direitos. A que o senhor atribui este crescimento?
JG – Eu atribuo esse crescimento a uma legislação que tem sido muito frouxa nessa questão. Pessoas que utilizam de um equipamento público, de uma concessão pública, para fazer campanha, gerando desigualdade no pleito. Você tem uma situação deles se promoverem, inclusive deles atacarem possíveis adversários políticos em todo o período de pré-campanha e apenas poucos meses antes da campanha eles saem dos programas. Isso precisa ser revisto, principalmente nesses casos de pessoas que utilizam as concessões de rádio e TV para se promoverem, gerando desigualdade, além de que a forma como é tratada a questão, de uma política pública que é a segurança e da política em geral, de uma forma até rocambolesca, de uma forma que não promove o debate público, é mais uma questão que deve ser tratada e isso é muito preocupante.
MD – Nesta mesma pesquisa foi constatado também o crescimento de candidaturas políticas de agentes de segurança pública, como policiais civis e militares. A partir de qual contexto este fenômeno pode ser explicado?
JG – Também é algo que chama a atenção os policiais candidatos, e não são todos, é um grupo específico, policiais que têm parceria com esses programas policialescos. Primeiro lugar, percebe-se que a pauta promovida ou a desinformação promovida pelos policialescos, em parceria com estes policiais, resulta em eleições desses dois segmentos. Então, a desinformação, a segurança pública sendo tratada com exposição indevida de pessoas que estão sendo presas, e que estão violando o direito à presunção de inocência, a pauta da segurança pública sendo tratada como a pauta da violência, como se segurança pública fosse assassinar pessoas, cometer chacinas, massacres, etc, tem provocado isso.
Para mim, não é só a legislação eleitoral que tem falhado, tem também a atuação do órgão de controle externo da atividade policial, que é o Ministério Público, que tem permitido essas falas, que tem permitido essas atuações e que isso vem resultando no crescimento dessas candidaturas. A segurança pública sendo tratada como a licença para matar, como espetáculo, e não como política pública, violando direitos de pessoas que estão sendo presas, violando vários direitos e se promovento politicamente. É um prejuízo muito grande para a sociedade e isso precisa ser tratado com o maior cuidado pelo Ministério Público, e a instituição deveria fazer o controle externo da atividade policial. Há alguns anos, o ministro do Supremo Tribual Federal, Gilmar Mendes, disse que a atuação do Ministério Público em relação à atividade policial trata-se de uma grande ficção e, infelizmente, é algo que precisa ser repensado. Talvez este órgão não sirva para isso ou não tenha vocação, o fato de ser titular da ação penal tenha gerado uma aproximação muito grande entre o MP e as polícias. Talvez esse controle deva ficar com a Defensoria Pública, mas do jeito que está não tem dado certo.
MD – Os programas policialescos adotaram novos formatos, não estando apenas TV, mas indo para as plataformas digitais, sendo apresentados, em sua maioria, por policiais. No meio digital, como o MPF tem atuado e como a própria população pode atuar na fiscalização e combate às violações aos direitos humanos, a desinformação e o discurso de ódio?
JG – A saída dos programas policialescos, esses novos formatos, como você diz, eu não sei, eu tenho sempre a impressão que são formatos que se vinculam a atuação da TV e do rádio, principalmente da TV. Ou seja, normalmente são pessoas que já são conhecidas por causa da sua atuação na TV e acabam indo para outras plataformas. Acaba sendo uma vinculação derivada, já é conhecido na TV e no rádio e vai para as outras plataformas. Há uma dificuldade maior de atuação porque eles não estão usando uma concessão pública de rádio e TV, e respondem pela legislação comum. Quero dizer com isso que a atuação no rádio e na TV, como são concessões públicas, eles têm responsabilidades específicas, previstas na Constituição. Ao saírem dessas duas plataformas, eles passam a responder pelos crimes comuns, crimes vinculados aos chamados crimes de ódio e pelas responsabilidades civis comuns. Então, nós também temos recebido denúncias nesses casos e temos autuado, principalmente quando ofendem indígenas, quilombolas, nordestinos, população negra, cigana, entre outras. Inclusive, há inquéritos policiais instaurados contra esses atores, e não são nem sempre estes atores, eles estimulam esse discurso de ódio e acaba que os comentários que seguem suas postagens são comentários criminosos. Isso tem sido muito comum nas denúncias que chegam até o Ministério Público Federal.
MD – Um dos casos que o MPF na Paraíba atua é na Ação Civil Pública, ajuizada na Justiça Federal, contra o apresentador de programa policialesco, Sikêra Júnior, que desrespeitou o Termo de Ajustamento de Conduta, firmado em 2018. Como está o andamento desta Ação e quais as expectativas do FINDAC para que o apresentador seja punido?
JG – O caso de Sikêra Júnior a ação foi aceita, ele foi intimado para apresentar contestação, ele apresentou, o Ministério Público apresentou a réplica e nesse momento o juiz deve fazer o saneamento do processo onde as partes indicarão se têm provas a produzir. Por parte do Ministério Público não há, as provas já foram juntadas aos autos e após essa fase deve ir para a sentença. Uma outra atuação nesse caso do apresentador é a denúncia por racismo, que deve estar sendo apresentada nos próximos dias.
MD – O senhor acredita que uma regulamentação dos meios de comunicação impediria a violação dos direitos humanos na mídia brasileira?
JG – A regulamentação dos meios de comunicação é algo absolutamente necessário, que vem acontecendo em diversos países. Inglaterra tem uma regulamentação muito boa e nem por isso ninguém diz que lá não é uma democracia, países vizinhos como a Argentina e Uruguai também têm meios de regulamentação da mídia muito bons. Até os Estados Unidos tem uma regulamentação mínima, que se não é ideal, insisto, não é algo absolutamente livre como acontece no Brasil, sem nenhuma legislação, sem um órgão central que fiscalize, sem nada, absolutamente nada.
É preciso termos uma legislação que trate da regulamentação dos meios de comunicação e da responsabilização. Vai ser comum a desinformação para que isso não ocorra, ninguém quer ser controlado, as pessoas, as empresas querem viver num ambiente de absoluta liberdade, mesmo que esse absolutismo da liberdade gere violações de direitos humanos. Mas é preciso que o Brasil dê esse passo, é preciso que o Brasil avance nessa questão, surgirão diversos discursos, de que é censura ou o que for, que não é democrático, mas não é, isso é falácia. Democracia requer respeito, democracia requer, inclusive, meios de proteção da própria democracia e veja que a ausência de regulação da mídia faz com que muitos meios de comunicação adotem discurso contra a democracia, então a democracia para sobreviver não pode tolerar discursos anti-democráticos, é lógico. A regulação da mídia não vai impedir isso, mas vai ter meios de controle e as pessoas serão punidas e essa é uma necessidade urgente para o Brasil.
MD – Em diversos países democráticos, como os que você citou e outros, a mídia é regulada. No Brasil, há legislações que preveem esta regulação, como o Código Brasileiro de Telecomunicações e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, mas quando se fala sobre isso, dizem que é censura. A que o senhor atribui essa interdição do debate sobre a regulação dos meios de comunicação no Brasil?
JG – Eu acho que você vai ao ponto. Há uma interdição do debate, corporações com muito poder econômico, e poder de comunicar-se com as pessoas, utilizam de fake News, de informações falsas e de desinformação para travar o debate, dizendo que é censura regular a mídia e que não seria democrático. É lógico que isso é uma mentira, países democráticos, reconhecidos por todos como democracias, França, Inglaterra, Canadá, Argentina, Uruguai, têm regulação de mídia, ela é necessária. Não é possível você ter uma atividade que atua de forma livre, podendo violar, desestabilizar democracias, violar direitos humanos, cometer infrações éticas, absolutamente reprováveis, crimes, sem nenhum tipo de regulação, de punição, sem um órgão central, sem nenhum tipo de diretriz. Essa interdição do debate vai acontecer se ele for pautado, mas o Brasil precisa urgentemente fazer uma legislação tratando desse assunto.
Este artigo faz parte da série “Ideias para um Brasil Democrático”, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, em parceria com o Intervozes, publicada no Congresso em Foco.
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