Cientista brasileiro referência mundial em mudanças climáticas, o meteorologista e climatologista Carlos Nobre alerta que os desastres ambientais no Brasil, como o ocorrido nos últimos dias no litoral de São Paulo, tendem a ser cada vez mais frequentes e mais graves. Com formação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e coautor da pesquisa vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2007, Carlos Nobre explica que o aumento da temperatura global está diretamente atrelado às catástrofes no litoral brasileiro.
“Esse é o risco decorrente de nós continuarmos aquecendo o planeta, continuarmos lançando gases de efeito estufa, como dióxido de carbono, metano, óxido nítrico, entre outros. Se continuarmos aumentando, em 2023 teremos o recorde de emissões no planeta, vamos manter o aumento da temperatura e esses fenômenos que vivenciamos hoje serão brincadeira perto do futuro”, diz o pesquisador em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
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Segundo Carlos Nobre, evitar a escalada do aquecimento global é o maior desafio já enfrentado pela humanidade. “É muito importante, para evitar esses desastres no futuro, o Brasil e o mundo alcançarem as metas do Acordo de Paris para não deixar a temperatura subir acima de 1,5ºC. Esse é o maior desafio que a humanidade já enfrentou: reduzir pela metade as emissões até 2030 e zerar as emissões até meados do século.”
Pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e diretor científico do Instituto de Estudos Climáticos da Universidade Federal do Espírito Santo, Nobre ressalta que também é preciso preparar a sociedade, os sistemas econômicos e as populações das áreas de risco para enfrentar os fenômenos climáticos.
“No longo prazo, a prioridade é concentrar em políticas para tirar nossas 10 milhões de pessoas de áreas de risco. A maioria destas, inclusive, vive em áreas de alto risco: regiões em que não há solução da engenharia para tornar seguras, em que a única solução é tirar as pessoas dali”, defende o climatologista, primeiro brasileiro a ser eleito para a britânica Royal Society, uma das mais antigas na promoção do conhecimento científico.
Desastres ambientais extremos ganharam espaço cada vez maior nos noticiários ao longo dos últimos anos. Apenas no último ano, ao menos quatro receberam atenção nacional: enchentes no sul da Bahia e norte de Minas Gerais ao longo de janeiro, deslizamentos em massa na serra fluminense em março, chegando a atingir a cidade histórica de Petrópolis. Em junho, Pernambuco foi fortemente afetado por sua pior enchente no século. Em dezembro, vários municípios de Santa Catarina ficaram alagados.
O ano de 2023 não começou diferente. No dia 8 de janeiro, enquanto o Congresso Nacional era atacado por golpistas, o presidente Lula visitava o município paulista de Araraquara, um dos mais atingidos por chuvas intensas que provocavam danos estruturais, deslizamentos, cortes de energia e quedas de árvores. Cinco pessoas morreram em meio à tragédia.
Na segunda metade de fevereiro, o mesmo estado volta a ser vítima de uma catástrofe ambiental. Ao menos 40 pessoas morreram, e outras 2,5 mil estão desabrigadas em decorrência das enchentes que atingem o município de São Sebastião e as cidades ao redor. Segundo Carlos Nobre, enquanto as temperaturas globais permanecerem elevadas, esses desastres seguirão acontecendo com frequência. Até que o aquecimento global seja solucionado, resta ao Brasil se preparar e se equipar para lidar com o pior.
Confira a entrevista:
Congresso em Foco – Desastres ambientais se tornaram um fenômeno recorrente no litoral brasileiro desde o início da década. O que pode estar provocando isso?
Carlos Nobre – A explicação científica no aumento da frequência desses eventos extremos é o aquecimento global. A temperatura global já subiu quase 1,2ºC desde o século 19, e 80% desse crescimento se deu desde a década de 1960. Com isso, aqui no Brasil, já começamos a vivenciar o aumento em 50% de eventos extremos de todos os tipos em comparação com meados do século passado.
É importante ressaltar que o aquecimento global não está provocando apenas o aumento na frequência desses eventos, mas também o impacto provocado por eles, com os recordes sendo sempre batidos. Nós tivemos agora as maiores chuvas já observadas no sudeste do Brasil em um período de 24 horas. Ano passado, já tivemos 500 mm em Petrópolis no mês de março, que em apenas três horas chegou a 270 mm. Esses recordes vêm sendo batidos em todo o mundo, mas também no Brasil. E isso tem tudo a ver com as mudanças climáticas.
Nos trópicos, esses eventos tendem a acontecer no verão. Com o calor, temos mais umidade e consequentemente mais água na atmosfera. Na medida em que o planeta aquece, é como se tivéssemos “mais verão”. A situação se torna mais propícia a enchentes: quando a temperatura do oceano passa de 26,5ºC para 27ºC, a evaporação aumenta exponencialmente. Por isso, temos os aumentos no tamanho e na frequência das tempestades no Brasil, bem como no número de furacões no Caribe, onde a água ficou mais quente.
Quais tipos de eventos extremos devemos ter no Brasil daqui pela frente?
Todo tipo de evento extremo está acontecendo. No caso das zonas costeiras, por exemplo, ontem (19), no litoral norte de São Paulo, tivemos recordes de chuvas, chegando a 600 mm em partes do litoral, e 400 mm em quase todos os municípios. Mas, além disso, tivemos o aumento do nível do mar, que ficou dois metros mais alto, no que chamamos de ressaca: evento que ocorre quando uma tempestade muito forte dentro do oceano transfere energia para a água, que forma algo similar a uma onda oceânica.
Isso já é um dos fenômenos que devemos esperar: as tempestades dentro do oceano tendem a aumentar, e isso torna as ressacas cada vez mais frequentes. Inúmeros outros eventos também tendem a se manifestar. Em janeiro, por exemplo, registramos o recorde de temperatura mais alta na história do Brasil. Tivemos também secas muito pronunciadas, com recordes de secas no Rio Grande do Sul. Todos esses fenômenos acontecem globalmente.
O que pode ser feito para deter esses eventos?
Quando a gente olha o risco que o planeta enfrenta, esse é o risco decorrente de nós continuarmos aquecendo o planeta, continuarmos lançando gases de efeito estufa, como dióxido de carbono, metano, óxido nítrico, entre outros. Se continuarmos aumentando, em 2023 teremos o recorde de emissões no planeta, vamos manter o aumento da temperatura e esses fenômenos que vivenciamos hoje serão brincadeira perto do futuro.
É muito importante, para evitar esses desastres no futuro, o Brasil e o mundo alcançarem as metas do Acordo de Paris para não deixar a temperatura subir acima de 1,5ºC. Esse é o maior desafio que a humanidade já enfrentou: reduzir pela metade as emissões até 2030 e zerar as emissões até meados do século.
Agora, mesmo que tenhamos sucesso no acordo, a temperatura vai chegar ao aumento de 1,5ºC. Os oceanos um dia chegarão a essa temperatura, o que pode levar um século ou até mais. Quando isso acontecer, teremos muito mais eventos extremos do que hoje: no mínimo, um aumento de 30% nas chuvas intensas que provocam deslizamentos nos nossos litorais.
Com isso, além de tentar cumprir o acordo, teremos que nos adaptar a este planeta e ao aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos que nos atingem. Para isso, teremos que preparar toda a sociedade, os sistemas econômicos, a agricultura e, principalmente, as populações das áreas de risco. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), mais de 10 milhões de brasileiros, principalmente em áreas urbanas, vivem em áreas de risco.
Quais medidas devemos adotar em nível nacional para isso?
Vai ser um enorme desafio especialmente no caso de um país com desenvolvimento médio, como o Brasil. No longo prazo, a prioridade é concentrar em políticas para tirar nossas 10 milhões de pessoas de áreas de risco. A maioria destas, inclusive, vive em áreas de alto risco: regiões em que não há solução da engenharia para tornar seguras, em que a única solução é tirar as pessoas dali.
No caso do litoral norte de São Paulo, muitas das casas que desabaram estavam em terreno íngreme, próximo ao mar. No RJ, também, temos mais de 40 mil pessoas morando em áreas de altíssimo risco, com terrenos de inclinações superiores a 25º. Elas não podem continuar lá. O poder público vai ter que encontrar um lugar mais seguro para deixar essas pessoas.
Isso, claro, vai levar muitos anos. O que precisamos fazer até lá é aperfeiçoar cada vez mais nossos sistemas de alerta. O Cemaden já trabalha dando alertas a mais de mil municípios, alertas belíssimos. Nos municípios de São Paulo, por exemplo, eles deram alerta de risco altíssimo na meia-noite de sábado (18), situação em que a Defesa Civil deve remover toda a população de áreas de risco.
Quando se adotam políticas desse tipo, com a Defesa Civil devidamente equipada com para avisar a população do momento de sair de suas residências e partir para lugares seguros, o número de mortos passa a ser muito pequeno, próximo a zero. No próprio caso de São Sebastião, o número de mortos teria sido muito menor se não fossem os alertas.
E claro, precisamos capacitar a população, treinar muito a população para que ela própria saiba como lidar com situações de risco. Temos, por exemplo, o Japão, país com o melhor sistema de educação para desastres naturais do mundo: as crianças aprendem desde os cinco, seis anos de idade, já no ensino fundamental, a responder a todo tipo de desastre natural, principalmente terremotos, que são um desastre totalmente imprevisível.
Nesse aspecto, é essencial distribuir sirenes em massa, pois nem sempre é possível alertar sobre um desastre com antecedência. A enchente da região serrana do Rio de Janeiro de 2022, por exemplo, não foi prevista em nenhum sistema meteorológico do Brasil ou no mundo. Nessas horas, o alerta por sirene é o único recurso restante para avisar a população.
Garantir esse aparato de defesa civil e alerta não é barato. Espalhar e manter radares meteorológicos, sensores de nível de rios, sirenes, etc. requer um custo alto. Estamos falando de bilhões de reais tanto para modernizar o equipamento existente quanto para pôr em prática a realocação das pessoas de áreas de risco, um espécie de “Minha Casa, Minha Vida Sustentável”.
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