Não há uma regra a priori que determine como trazer à existência um bom Estado – trata-se de um processo, dinâmico e complexo, mediante o qual o Estado emerge da complexidade de uma série de fatores em interação. Assim, o Estado ideal permanece como utopia, o horizonte para além do realizável, que, porém, exerce uma atração radical, dinamizadora e direcionadora dos passos daqueles que servem à esperança.
Os governos, de modo geral, têm lidado com um contexto amplamente diferente do quadro de estabilidade que se seguiu à Segunda Grande Guerra. Após um longo período de prosperidade, sobrevieram o rompimento do padrão-dólar e a inoperância das instituições de Bretton Woods; as crises do petróleo; a crise das dívidas dos países em desenvolvimento e o surgimento de uma conjuntura crônica de crise fiscal.
Como pano de fundo, aconteceram intensas transformações no mundo, como a revolução das comunicações e dos transportes; o avanço da globalização, com a consequente interdependência das nações; o surgimento de problemas de alta complexidade e escala global, envolvendo múltiplos atores agindo simultaneamente (como a pandemia de covid-19 e a crise climática, por exemplo). Os problemas a serem enfrentados pelo setor público se tornaram complexos, tanto do ponto de vista conceitual quando do ideológico; e as decisões e ações passaram a ocorrer em um ambiente de imprevisibilidade e incerteza.
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A sociedade civil, por sua vez, torna-se cada vez mais exigente e organizada, demandando políticas públicas inclusivas e ampliação da oferta de bens e serviços públicos, enxergando o Estado como gerador e assegurador de novos direitos.
As abordagens convencionais de governança e de administração pública não foram concebidas nem organizadas para lidar com complexidade e incerteza, o que tem levado a administração pública a buscar novos modelos e metodologias para elaborar diagnósticos, planejar e gerir de forma mais eficaz e eficiente seus projetos e processos de trabalho. Diante do poder público encontra-se o imperativo de exercer papel mais dinâmico, integrando a autoridade governamental e o poder coletivo dos atores, de forma a obter resultados de alto valor público, tanto em circunstâncias previsíveis quanto nas imprevisíveis.
O qualificativo público agrega um grau de abstração a um elemento já intangível por natureza, o serviço. Serviço público, portanto, é daqueles conceitos que encontram grande dissenso no plano das ideias, com especialistas procurando defender diferentes aspectos, dependendo de sua origem acadêmica. Porém, é um conceito que abriga um fácil consenso no mundo da vida, prático, quanto à sua boa execução. Ou seja, não se sabe bem como definir o que é o serviço público, mas sabe-se com clareza quando esse é bem prestado. A experiência demonstra que enfoques radicais de redução de gastos causam a deterioração da capacidade de ação do Estado, levando ao desmonte do aparelho estatal e ao desprestígio do servidor público. Paradoxalmente, essas abordagens convivem com crescentes expectativas da sociedade por uma ampliação da atuação estatal.
O horizonte da administração pública hoje então entrelaça-se com um aprofundamento radical da democracia. De certo há modelos alternativos “no mercado”, como os planos autoritários que seguem na esteira do extremismo de direita que chegou ao poder na última década. Contudo, se pretendemos nos manter fieis às ideias de governo com consentimento e também controle por parte dos governados, a democracia é o único jogo disponível.
O mundo contemporâneo ao mesmo tempo criou os problemas complexos atuantes em escala global como também empoderou o indivíduo. Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história, acredita-se que cada pessoa deve ter voz e relevância nos processos dos quais participa, daí o surgimento do conceito amplo de stakeholder, a parte interessada nas decisões e ações que a toca.
Assim, o serviço público do futuro será aquele que trouxer para dentro da formulação, da implementação e também da avaliação a voz e a energia da sociedade. Fronteiras devem cair para que uma simbiose crescente entre forças do mundo estatal e aquelas da sociedade criem o universo público. Todo o terceiro setor de ONGs e organizações variadas da sociedade civil tem sido experimentado no Brasil com parceiras principalmente depois do governo FHC. Para o Brasil, um país estatalista – marca sempre presença de nossa constituição histórica – e também patrimonialista, o desafio é bastante maior do que para sociedades em que o espaço público é respeitado e não objeto de predação como costuma ocorrer entre nós. Contudo, o desafio permanece e é este mesmo: nos tornarmos uma sociedade garantidora de direitos substantivos e democrática.
Para então avançarmos nesse desafio é importante que a máquina do Estado – de fato seus operadores, os servidores públicos – evolua sua cultura para compreender a sociedade como parceira em todas as etapas da sua ação. Da mesma forma, a sociedade deve preparar-se para atuar como esta parceira esperada nas ações públicas, em uma articulação responsável e cooperativa.
Parece-nos que temos adiante então o necessário amadurecimento conjunto tanto da administração pública quanto da democracia. A democracia se radicaliza – no sentido literal de soltar raízes para dentro da máquina do Estado – e ao mesmo tempo viabiliza e legitima o que sejam os serviços públicos, porque legitimados pelo que é a essência do público, o sentimento da coletividade.
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