Dayana Rosa e Rebeca Freitas *
Foi preciso o jornalista Leão Serra tomar o celular de um político que atacava a sua colega, Vera Magalhães, para cessar mais um episódio de violência política, termo cada vez mais popular após o assassinato de Marielle Franco. É certo que toda violência é política, mas quando ela se dá no âmbito formal da política representa um ataque à democracia. Em meio a debates calorosos, amizades foram desfeitas, familiares se afastaram e os almoços de domingo ficaram ainda mais difíceis.
Parece que parte do que resta em comum entre as ilhas que criamos com pessoas que pensam igual a nós é a ansiedade e a depressão. Essa última, segundo o Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel), cresceu mais de 41% nos últimos anos, superando os casos de diabetes. Afinal, é possível ter saúde mental em um cenário politicamente polarizado, de negação da ciência e de violência política?
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Nos Estados Unidos, país historicamente dividido entre republicanos e democratas, a Associação Americana de Psicologia concluiu que em 2020, ano da disputa entre Joe Biden e o então presidente Donald Trump, houve um aumento de estresse em comparação ao pleito anterior, quando o republicano venceu a democrata Hillary Clinton. Em 2016, 59% dos republicanos responderam que o período eleitoral era uma fonte de esgotamento, ante 55% dos democratas. Já em 2020, a taxa chegou a 76% entre os democratas, enquanto para os republicanos ficou em 67%.
No Brasil de 2022, a eleição do 39º presidente da República elevou o tom da já existente polarização política e os episódios de agressão e de hostilidade também estão gerando reações emocionais na população brasileira.
Pesquisa Datafolha demonstrou que o medo da violência política pode afastar até 9% do eleitorado brasileiro da votação no primeiro turno; 40% dos eleitores entrevistados consideram que existe grande probabilidade de violência política no dia da eleição. Outra pesquisa, realizada pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que 67,5% dos brasileiros têm medo de sofrer agressão física em razão de sua escolha política ou partidária.
A política afeta a saúde mental, mas políticas públicas podem ter um papel importante para amenizar esses efeitos. Partindo dessa premissa, formulamos várias propostas para serem implementadas no próximo período de governo. Apesar de serem iniciativas de baixo custo e possíveis de tirar do papel rapidamente, a priorização dessas ações tem como principal empecilho a negação da ciência enquanto verdade, uma vez que nosso objetivo foi contribuir para a lacuna de informações sobre as políticas de saúde mental. Aqui, a polarização é verificada também na leitura que é feita da realidade, dividindo a população entre aqueles que olham para um dado e veem a verdade, e aqueles que olham para um dado e contam uma mentira, distorcendo a relação entre ciência e subjetividade.
Chegamos ao ponto em que o óbvio ganhou importância de ser defendido no palanque. Esse é o caso da defesa da manutenção das políticas de saúde mental no Ministério da Saúde: parece óbvio, mas não é, pois atualmente as internações psiquiátricas são também administradas pelos ministérios da Justiça e da Cidadania, impossibilitando a fiscalização, o controle e o monitoramento desse ato que representa nada mais, nada menos do que restringir a liberdade de uma pessoa com transtorno mental. Ou seja, isolar quem se comporta diferente, tirar da frente aquilo que não se quer ver. Quando defender o óbvio se torna urgentemente necessário, se posicionar politicamente já não é mais um desafio tão árduo. O que tem sido chamado de polarização visibiliza as diferenças e pode ter o efeito de facilitar a tomada de decisão, voto consciente e formulação de consenso.
O consenso pode determinar o sucesso de um governo, mas ele só pode existir a partir do agrupamento das diversidades que somente a democracia pode possibilitar. Da mesma forma é a saúde mental, ela é coletiva e está diretamente relacionada com a política. Políticas públicas são responsáveis por melhorar ou piorar a vida de todas as pessoas. Podem gerar emprego, moradia e acesso à comida, mas também podem gerar desemprego, aumento da população em situação de rua e da fome. E este cenário desolador é o que vivemos em 2022.
Defender o SUS e seus serviços de saúde mental é defender a democracia, não apenas porque o SUS e a Constituição Federal nasceram juntas, mas também porque ambos possibilitam o acesso a outros direitos básicos como cidadania, participação social e liberdade – hoje em dia palavras menos utilizadas do que a chamada violência política. Além do aumento da depressão, que é consenso nas bolhas das pessoas que pensam igual, resta a necessidade de resgate de um outro consenso: a democracia, que não está óbvia e que deve, esta sim, ser o novo normal.
* Dayana Rosa é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), mestre e doutora em Saúde Coletiva e bacharel em Administração Pública.
Rebeca Freitas é coordenadora de Advocacy e Relações Governamentais do Ieps, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, cientista social e bacharel em Direito.
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