por André Sathler* e Renato Ferreira**
Embora nunca tenham estado simultaneamente no mesmo clube, o técnico Cuca e o atacante Vinícius Júnior já se encontraram, como adversários, nos gramados brasileiros, entre 2017 e 2018. Devem ter travado apenas um convívio protocolar e não muito próximo, como é o padrão normal de convívio entre atletas e treinadores que não dividiram o vestiário do mesmo time.
Não é muito provável, assim, que tenham algum dia se debruçado sobre uma janela olhando juntos para fora, refletindo sobre o ir e vir de carros, pessoas ou mesmo, num certo devaneio filosófico, sobre a vida e a passagem do tempo. Gostaríamos de imaginar aqui, no entanto, como teria sido uma conversa como essa diante de uma janela literal e lateral, como na bela canção eternizada por Milton Nascimento.
Diante dessa janela, talvez Cuca e Vini Jr. tivessem falado de futebol, de táticas, do Flamengo, do Palmeiras, do Santos, ou de como lidar com a fama e a rotina cheia de viagens e treinamentos do universo dos profissionais do futebol. Seria interessante, como sempre é, se tivessem avançado para tratar da vida, da existência, do que as pessoas pensam, ou sobre como a sociedade muda. Nesse último caso, a janela lateral, e literal, poderia ter se transformado numa interessante janela metafórica, a Janela de Overton.
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Joseph P. Overton morreu em 2003, quando Cuca apenas começava a despontar como treinador, no Goiás, e Vini Jr. ainda era um pequeno craque de 3 anos de idade. Ele desenvolveu uma teoria sobre a janela do discurso, argumentando que, em uma dada sociedade e em um dado momento, os assuntos são classificados politicamente dentro de uma régua que vai de um ponto “impensável” até um ponto que ele chama “política”, atravessando entre esses dois marcos os graus de aceitação “radical”, “aceitável”, “sensato” e “popular”. Na medida em que os assuntos passam de um ponto a outro dessa régua, eles passam a ter mais ou menos aceitação por parte dos políticos e, assim, têm chances maiores ou menores de ser objeto de políticas.
Para Overton, um assunto classificado como “impensável” jamais terá o apoio dos políticos para que seja objeto de uma nova lei, por exemplo. Na medida em que esse assunto vai caminhando na régua, ao longo do tempo, passando a ser “radical”, depois “aceitável”, depois “sensato”, ele vai tendo maiores chances de ser colocado em debate público, até chegar a se tornar uma política. Essa régua aponta que a opinião pública muda e, com essa mudança, as regras podem mudar, já que algo que passa a ser aceitável e depois “sensato” ou “popular” ganha maiores chances de se tornar uma política formal. O contrário também pode acontecer, com algo que antes era uma “política” se tornando “sensato”, depois “aceitável”, depois “radical” e depois “impensável”, deixando de ser objeto de qualquer política.
PublicidadeSe à dupla Cuca e Vini Jr., diante daquela janela, se somasse o Joseph Overton, talvez os três pudessem ter conversado sobre o movimento não apenas dos carros e pessoas ao longo do tempo, mas também o de temas como o assédio sexual, o racismo e os Direitos Humanos. Eu imagino que o treinador e o atacante teriam dado ao cientista político norte-americano respostas diferentes, pelo que se viu neste primeiro semestre de 2023.
O treinador Cuca pareceu não compreender, em sua passagem conturbada recente pelo Corinthians, o que aconteceu com o tema do assédio sexual. Mostrou-se indignado pela busca incessante da imprensa e dos torcedores pela compreensão exata dos fatos que cercavam sua condenação na Suíça, em 1989. A pressão foi tamanha que ele comandou o clube paulista em apenas dois jogos, pedindo demissão após uma vitória. Talvez tenha pensado que minimizar um caso como esse fosse algo “sensato” ou pelo menos “aceitável”, sem compreender que essa atitude hoje parece estar mais perto do ponto “impensável”.
Vini Jr., por outro lado, decidiu escancarar abertamente sua luta contra episódios de racismo que vem sofrendo, na Espanha, onde atua com a camisa do Real Madrid. Numa partida em Valência, ofendido por torcedores rivais, indignou-se e fez com que o jogo fosse paralisado em virtude das ofensas. Nas redes sociais, manifestou indignação com o presidente da La Liga (entidade que organiza o principal campeonato da Espanha) e sinalizou que lutará contra o racismo no esporte, ainda que tenha que deixar o país em que atua como um dos principais jogadores de um dos principais clubes do planeta. Atitude que talvez alguns pensassem ser “radical” e que Vini percebeu ser hoje, possivelmente, pelo menos “sensata”.
As situações recentemente vividas por Cuca e Vini Jr. mostram que o tema dos Direitos Humanos e as questões específicas do assédio sexual e do racismo se moveram bastante na Janela de Overton. O combate às violações de direitos, nesse âmbito, certamente migrou na direção do ponto central “política”, enquanto que as violações em si caminham na direção do extremo “impensável”. A opinião pública e os arranjos sociais que circundam os dois personagens claramente não veem as questões vivenciadas como viam antes, para surpresa de Cuca e alívio de Vini Jr.
Em relação a Cuca, basta lembrar que a repercussão da própria condenação do então atleta do Grêmio, nos anos 1980, foi branda. Ele seguiu atuando normalmente, como jogador e treinador, sem que o caso repercutisse tanto, até bem recentemente. Nos anos 1990, o Corinthians teve um zagueiro condenado junto com o próprio Cuca pelo mesmo fato, que atuou pelo clube por quase 300 jogos sem que o caso da Suíça tenha influenciado em nenhum momento. Em 2023, como mencionado, Cuca não suportou a pressão em razão do mesmo caso após apenas duas partidas.
Também a reação de Vini Jr. ao racismo é recebida de maneira muito diversa da de tempos outros. Pelé, considerado o maior de todos os tempos, nunca foi exatamente uma figura contundente no combate ao racismo, apesar de toda a visibilidade que teve. Michael Jordan, talvez o maior atleta do basquete em todos os tempos, também não capitaneou batalhas políticas nem mesmo quando envolviam racismo e chegou a creditar essa atitude, em documentário recente, ao fato de que era importante não prejudicar as relações com os patrocinadores, à época.
Como registrado na canção, quando eu falava dessas cores mórbidas, quando eu falava desses homens sórdidos… você não escutou. O que Overton nos coloca é que a escuta ou a não escuta é uma escolha sociotemporal e conjuntural. Assim sendo, quem escuta ou deixa de escutar é a sociedade. As reações iniciais ao episódio com Vini Jr. dão mostras de que a sociedade espanhola parece não querer escutar o clamor por um mundo em que o racismo esteja inteiramente superado. Não é exagero dizer o clamor de um mundo, basta a intensidade da manifestação da ONU, na pessoa de seu Secretário-Geral, contra o racismo, logo após o episódio.
É claro que boa parte da atitude de Vini Jr. vem de uma postura individual, de combate e luta pelos direitos, que é bem diferente da de Pelé e Jordan. Mas é mais justo e mais interessante perceber que os tempos (e a movimentação dos temas na Janela de Overton) permitem o maior ativismo, que é claro na ação de outros esportistas contemporâneos, como o heptacampeão de Fórmula 1 Lewis Hamilton. Tanto no caso de Hamilton como no de Vini Jr., não se espera que os patrocinadores reajam negativamente e há muito apoio público, mostrando que felizmente, em relação aos Direitos Humanos, o mundo de 2023 é mesmo mais acolhedor do que o de outros tempos. Há uma parte da sociedade disposta a escutar e a apontar o dedo para homens sórdidos de cores mórbidas.
Perceber o movimento dos temas na Janela de Overton é interessante para perceber que questões que antes não eram pautadas no debate público agora podem ser. No caso da maior consciência sobre os Direitos Humanos, é certamente algo muito importante e até fundamental para a consolidação de uma verdadeira cultura dos Direitos Humanos. Afinal, como produtos culturais e intersubjetivos que são, os direitos só existem quando se acredita coletivamente que eles existem.
O pensamento reacionário costuma se defender em situações assim apontando para as críticas como mimimi, expressão que veio a nomear reações supostamente exageradas ou não cabíveis diante de situações factuais quaisquer. Ou, ainda, buscando se esconder debaixo do manto da liberdade de expressão, alegando censura diante da manifestação do pensamento racista. Embora sejam posições superadas no plano do debate público e racional de ideias (a esfera pública atual), são ainda exploradas por alguns, haja vista a reação do próprio presidente da La Liga.
Por tudo isso, é preciso agir sempre com vigilância, porque o movimento dos temas na Janela de Overton não é sempre um caminho de evolução. Da mesma forma, nada garante que o movimento siga sempre na mesma direção: um tema pode passar de “impensável” a “radical” e daí a “aceitável” e depois retroceder para “radical” novamente, sem nunca se tornar “sensato”, “popular” ou “política”. Direitos Humanos devem ser cada vez mais firmados na consciência de todas as pessoas, sob pena de serem desrespeitados. A educação para os Direitos Humanos é essencial para que esse caminho siga sempre na direção daquilo que Steven Pinker considera “os anjos bons da nossa natureza”.
Mesmo nos casos recentes da reação de figuras como Vini Jr. e Lewis Hamilton contra o racismo, há vozes dissonantes querendo inverter o movimento desse tema na Janela de Overton. Vini foi atacado pelo Presidente da La Liga, ofendido ainda em campo por atletas do Valência (o que levou à expulsão do atacante do Real Madrid) e criticado pelo Jornal argentino Olé. Hamilton algumas vezes teve manifestações antirracistas desautorizadas pela própria Fórmula 1 e sofreu ofensas racistas públicas por parte do tricampeão brasileiro Nelson Piquet.
A luta para definir em que ponto da Janela de Overton está o respeito aos Direitos Humanos é de todas as pessoas, sempre que esses temas se apresentam. Para consolidar a dignidade humana, é preciso conhecer os Direitos Humanos e defendê-los no dia a dia, em todas as relações pessoais. Não basta ficar olhando pela janela.
* Economista, Mestre em Comunicação Social e em Informática e Doutor em Filosofia, é coautor da obra Declaração Universal dos Direitos Humanos Comentada (Edições Câmara).
** Advogado, Mestre em Direito e Doutor em Ciência Política, é coautor da obra Declaração Universal dos Direitos Humanos Comentada (Edições Câmara).
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