O presidente Jair Bolsonaro sentiu claramente o golpe. A carta promovida pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) já tem mais de 250 mil assinaturas (é possível aderir a ela. Para isso, clique aqui). Na manhã desta quinta-feira (28), Bolsonaro demonstrou o quanto a carta o incomodou. E, na sua reação, o presidente traz alguns argumentos que seriam risíveis se, dados os riscos institucionais que hoje estamos correndo, não fossem trágicos.
A um manifesto que foi iniciativa de uma faculdade de Direito e já conta com mais de 250 mil assinaturas, Bolsonaro atribui a responsabilidade a uma insatisfação de banqueiros com algumas ações do seu governo, que, conforme Bolsonaro, teria inventado o PIX e estaria estimulando o desenvolvimento dos bancos digitais, gerando insatisfação dos bancos tradicionais.
Basta abrir a lista de signatários da carta para perceber claramente que ela é principalmente uma iniciativa inicial da comunidade acadêmica. Todos os primeiros signatários são membros da própria USP ou de outras universidades. Depois, há a adesão de advogados, juristas e ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro signatário de alguma forma ligado a bancos é o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. Há mais de 400 nomes na lista antes de chegar ao nome de Armínio Fraga. Até, por exemplo, o nome do empresário Emerson Kapaz, é preciso ler mais de mil nomes. Mais uma centena depois de Kapaz para chegar a Horácio Lafer Piva. E outro tanto para chegar a José Olympio Pereira, ex-presidente do Credit Suisse. Milhares e milhares de nomes depois, está, por exemplo Luís Eulálio Bueno Vidigal Filho. Mesma situação de Olavo Setúbal, do Banco Itaú.
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É mais do que evidente que a carta não foi iniciativa dessa elite bancária e empresarial. Que tem seus nomes na carta misturados ao de artistas, como o compositor, poeta e escritor Chico Buarque ou a cineasta Monique Gardenberg, e até ex-jogadores de futebol como Raí.
Quanto ao argumento furado a respeito do PIX, se tal insatisfação de fato houvesse ela deveria ser dirigida ao governo Michel Temer, que começou a imaginar a ferramenta. O governo Bolsonaro somente a implementou. E não teria havido a rápida adesão ao sistema se os bancos não tivessem da mesma forma que os usuários aderido a ele. Uma reportagem feita pela CNN em fevereiro deste ano informava que, de fato, o PIX teria retirado R$ 1,5 bilhão em receitas dos bancos. Mas dizia que, mesmo com esse impacto, as receitas dos quatro maiores bancos brasileiros tinham atingido R$ 122 bilhões.
O que há, de fato, é uma preocupação com a manutenção da democracia brasileira. E por que banqueiros e empresários preocupam-se com os riscos à democracia e unem-se às demais pessoas nessa preocupação? Porque negócios dependem de previsibilidade. Dependem de estabilidade. Dependem de tranquilidade. E o que mais falta hoje no Brasil são previsibilidade, estabilidade e tranquilidade.
Bolsonaro pergunta, então, qual é a ameaça que ele oferece à democracia. Listamos aqui dez vezes em que o presidente ofereceu ameaça à democracia.
- No último domingo, 23 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro mais uma vez atacou o Supremo Tribunal Federal (STF). Chamou os ministros de “surdos de capa preta”. Enquanto ele falava, seus apoiadores gritavam que “Supremo é o povo”. O artigo 2º da Constituição afirma que os três poderes da República devem ser “independentes e harmônicos”. A todo momento, o presidente provoca desarmonia entre os poderes. Toda vez que ele provoca desarmonia entre os poderes, ele ameaça a democracia.
- No mesmo domingo, 23 de agosto, o presidente convocou as pessoas a irem às ruas no dia Sete de Setembro “pela última vez”. Para que o Supremo entenda o que é “a voz do povo”. Um princípio basilar do Direito é que o juiz deve julgar de maneira imparcial. Ainda que isso seja uma impossibilidade prática do mundo real, ainda que se sabia que um juiz, como qualquer cidadão, tem suas posições políticas, ele deve se esforçar ao máximo para evitar que elas interfiram nas suas decisões. Os ministros do Supremo devem procurar realizar seus julgamentos à luz do Direito, e não da pressão popular. Se Bolsonaro ou qualquer pessoa do governo diverge de alguma decisão do STF, precisa divergir tecnicamente, com recursos jurídicos. Quando coloca o povo contra as decisões tomadas por um poder, Bolsonaro ameaça a democracia.
- Bolsonaro começa a repetir, assim, o que fizera no Sete de Setembro do ano passado, quando disse, em discurso, que não mais obedeceria a decisões judiciais que fossem tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes. Qualquer cidadão que desrespeita uma ordem judicial sofre sanções por isso. Normalmente, o cidadão comum vai preso. Quando um presidente diz que não cumprirá uma ordem judicial, dá um péssimo exemplo para os demais cidadãos. Na ocasião, o STF deixou claro ao presidente que, nessa balada, haveria consequências. Bolsonaro recuou. E recuou porque sabia que, naquele momento, ameaçava a democracia.
- Quando concedeu perdão ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que sofreria sanções por desobedecer a ordens judiciais, Bolsonaro realizou o mesmo tipo de ataque. Sinalizou ali que os “amigos do rei” estão libertos de obedecer à Justiça. Tipo de situação que faz engrossar o coro de que “Supremo é o povo”. Quando um dos poderes é desacreditado e tem sua harmonia e independência comprometida, a democracia está ameaçada.
- Bolsonaro reuniu embaixadores de diversos países para repetir inverdades sobre o sistema eletrônico de votação. No mínimo, para repetir questionamentos sobre os quais ele não tem a menor comprovação. Valeu-se, assim, da estrutura de governo para lançar questões que só interessam a ele. Quebrou o princípio da impessoalidade. Lançou dúvidas à democracia. É inquestionável aqui a ameaça à democracia.
- Ao longo de sua vida política toda, Bolsonaro enalteceu o regime militar brasileiro, que foi uma ditadura. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconheceu 434 mortes e desaparecimentos políticos ocorridos durante a ditadura militar.
- Ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro fez uma homenagem ao general Brilhante Ustra, o primeiro militar brasileiro condenado por tortura. No regime militar, Dilma Rousseff foi torturada. Não há tortura em uma democracia.
- Quando deputado, certa vez Bolsonaro pregou o “fuzilamento” do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Curiosamente pela defesa que Fernando Henrique fazia á época da privatização de estatais. Hoje, o presidente Bolsonaro privatiza a Eletrobrás e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, defende a privatização da Petrobras. Pode-se até discutir a privatização de estatais. Mas sugerir fuzilamento de presidente é ameaça à democracia.
- Em uma entrevista em 1999, Bolsonaro pregou que os problemas brasileiros só se revolveriam com uma guerra civil em que morressem “uns 30 mil”. Emendou dizendo que morreriam “uns inocentes, mas tudo bem”. O estado democrático de direito não pode admitir por normal uma situação em que morram inocentes. A declaração é uma ameaça à democracia.
- Somente pela covid-19, já morreram no Brasil mais de 600 mil inocentes…
Se Bolsonaro não percebe as seguidas ameaças que faz à democracia, e o dano que isso provoca, dado ele ser o presidente da República, ainda há tempo de mudar. Há gente no seu entorno, inclusive, que o vem aconselhando nesse sentido.