A denúncia de reportagem da Folha de S.Paulo publicada nesta quinta-feira (18) colocou ainda mais em evidência o uso de notícias falsas (ou fake news, no termo popularizado em inglês) nestas eleições. Segundo apuração do jornal, empresas apoiadoras do candidato Jair Bolsonaro (PSL) teriam custeado serviços de disparos em massa de mensagens contra o candidato do PT no Whatsapp. Entretanto, frente ao tema, que assumiu a condição de principal fato político desta campanha , autoridades como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Ministério Público Eleitoral (MPE) e as próprias redes sociais, especialmente o Whatsapp, têm sido omissos e permitido que o problema se agrave.
Nestas eleições, uma avalanche de desinformação (desde conteúdos patentemente mentirosos até informações distorcidas ou imagens tiradas de contexto) inundou as redes sociais do país. Mais do que apenas nos submundos da luta política, a própria candidatura de Jair Bolsonaro e suas figuras centrais passaram a propagar tais informações falsas. Entre elas, a acusação desmentida pelo TSE de que Fernando Haddad (PT) teria distribuído um “kit gay” em escolas, a afirmação também falsa de que o ataque do qual o candidato foi vítima no início de setembro teria sido encomendado pelo PSOL e as imagens de supostas fraudes nas urnas também desmentidas pelo TSE.
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A despeito da inundação de notícias falsas e desinformação ter alcançado todas as redes (com diversas decisões do TSE determinando remoção de conteúdos no Facebook e YouTube), o WhatsApp entrou em evidência por se tornar o principal palco da circulação destes conteúdos. Essa prática foi denunciada pela coligação Brasil Feliz de Novo e por diversos estudiosos que monitoram o debate eleitoral em redes sociais. Levantamento dos professores Pablo Ortellado (USP) e Fabrício Benvenuto (UFMG) em parceria com a agência de checagem Lupa feito com 347 grupos na plataforma durante o primeiro turno revelou que apenas 8% das principais imagens compartilhadas neste período eram verdadeiras.
A matéria da Folha de S.Paulo mostrou que o problema pode ser mais grave. Não se trata apenas de milhões de eleitores multiplicando desinformação de forma espontânea, o que já pode ser encaixado em crimes eleitorais e contra a honra (como calúnia, injúria e difamação). Empresas apoiadoras de Bolsonaro teriam bancado contratos de dezenas de milhões de reais para firmas de marketing digital dispararem milhões de mensagens. Nesta sexta-feira (19), a publicação trouxe novas informações mostrando que apoiadores de Bolsonaro estão impulsionando conteúdos contra Fernando Haddad em outras redes, o que contraria as limitações previstas na Lei.
Essas revelações e a circulação de desinformação já denunciada largamente ainda no 1º turno podem ter influenciado decisivamente não apenas na votação de Jair Bolsonaro, principal beneficiário destas mensagens, mas também de candidatos a governos nos estados. Indícios dessa interferência são os desempenhos muito diferentes do que pesquisas apontavam de candidatos “colados” a Bolsonaro, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e Zema em Minas Gerais.
PublicidadeQuestionamentos legais
Em ação junto ao TSE, a coligação de Fernando Haddad (PT) argumentou que o fato denunciado pela Folha de S. Paulo, se confirmado, incorreria em três ilegalidades: doação de pessoa jurídica (conhecida como caixa 2), utilização de perfis falsos em propaganda eleitoral e comercialização de cadastros de dados de usuários de maneira irregular. Para os advogados, trata-se de abuso de poder econômico e o caso ensejaria inclusive cassação. O PDT pediu a nulidade das eleições em razão da influência que o emprego de disparos em massa no WhatsApp teria tido no pleito.
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Tanto PT quanto PSOL pediram em ações junto ao Tribunal Superior Eleitoral que a corte determine ao WhatsApp medidas para mitigar ou impedir a disseminação de desinformação. O PT requer da empresa um plano de contingência neste sentido e o bloqueio do envio de mensagens em massa pelas empresas de marketing digital identificadas na reportagem da Folha. O PSOL solicitou a restrição do número de destinatários do compartilhamento de mensagens “limitando-se ao máximo possível” e da quantidade de grupos dos quais um usuário pode participar. Hoje uma pessoa pode estar em até 9.999 grupos dentro da plataforma.
Omissão das autoridades
As autoridades eleitorais já estavam sendo questionadas pela inação diante do problema da desinformação. Após a denúncia da Folha, as cobranças aumentaram. Apenas no fim da quinta-feira, o Ministério Público Eleitoral afirmou que iria apurar o episódio. Mas o vice-procurador eleitoral, Humberto Jacques de Medeiros, chegou a falar a jornalistas que o problema não era tão grave. “Queria que vocês observassem, se olhassem as redes sociais, que o volume de informações mentirosas não tem esse número alarmante. Nós estávamos preparados, um ano atrás, era um cenário mais grave do que aquele que aconteceu”, disse a veículos de imprensa.
Diferentemente de outras áreas, onde o Ministério Público é bastante proativo frente a ilícitos, nas eleições o MPE não ajuizou ações contra perfis difusores de conteúdos enganosos. Na quinta, frente à denúncia da Folha, informou por meio de sua assessoria que não se pronunciaria sem ser provocado. Horas mais tarde, disse que apuraria após ter recebido representações sobre o caso. A Procuradora-Geral Eleitoral, Raquel Dodge, se limitou a dizer que “notícias falsas não convêm nem à democracia nem ao eleitor”.
Já o TSE realizou coletiva neste domingo, durante a qual a presidente do Tribunal, ministra Rosa Weber, minimizou o problema e disse que a Justiça Eleitoral está fazendo seu papel. Ao relativizar as críticas recebidas pela falta de medidas efetivas, afirmou: “se alguém tiver uma solução para fake news, apresente-nos”. A fala ignora diversas contribuições apresentadas não só em eventos do próprio Tribunal mas contribuições de entidades ao Conselho Consultivo do órgão, além das representações de candidaturas para a remoção de conteúdos falsos. Se os ministros tivessem julgado com mais celeridade e tratado conteúdos falsos enquanto tal, talvez diminuísse o sentimento de impunidade que impulsionou a prática por parte da candidatura que lidera as pesquisas, não sendo necessárias soluções mágicas. Mas parece que a preocupação do TSE quanto ao tema se limitou às supostas fraudes nas urnas eletrônicas.
Em reiteradas entrevistas, ministros da Corte têm dito que o problema são os conteúdos falsos contra a Justiça Eleitoral, e não aqueles atingindo determinadas candidaturas. Os magistrados têm evitado entrar no debate sobre os prejuízos causados pela desinformação no processo e às candidaturas. Têm insistido que o papel da corte é agir quando acionada pelas candidaturas. Este mantra foi repetido na única reunião do Conselho Consultivo do Tribunal para o tema, que teria a missão de pensar em medidas e soluções para o fenômeno.
Depois de não se reunir durante todo o 1º turno, o colegiado (que conta com representantes do MPE, da PF e de organizações da sociedade civil) teve encontro no dia 10. Ao fim, reforçou o coro de que o problema “foi menor do que o esperado” e localizou os prejuízos nas suspeitas direcionadas à Justiça Eleitoral. Como medida concreta, realizou dias depois uma reunião com o WhatsApp para discutir como viabilizar o direito de resposta em casos de questionamento do sistema de votação. Ouviu de representantes da plataforma que não seria possível. E parece ter se contentado com isso…
Decisões problemáticas
Se o TSE se esquivou de um papel mais ativo na prevenção e na pressão sobre as plataformas, no cumprimento de sua prerrogativa jurisdicional não foi melhor. Em que pese os mais de 30 processos analisados e dezenas de remoções de conteúdos falsos determinadas no Facebook e no YouTube, em uma só denúncia da candidatura de Fernando Haddad com 115 publicações falsas o ministro responsável acolheu a derrubada de apenas 35. Na maioria dos casos, a avaliação era que deveria ser preservada a liberdade de expressão. Conteúdos evidentemente falsos, como a afirmação de Olavo de Carvalho de que Fernando Haddad incentivava o incesto em um livro seu (“Em Defesa do Socialismo”), por mais absurdos e sem base, foram deixados no ar.
No caso do WhatsApp, a decisão do TSE foi muito mais problemática e na prática abriu espaço para legalizar a disseminação de desinformação na plataforma. Em decisão no dia 12, o ministro Luis Felipe Salomão negou pedido da candidatura de Fernando Haddad para retirar conteúdos enganosos de grupos dentro da rede segundo os quais o PT teria financiado performances de pessoas nuas. O argumento utilizado foi que a comunicação era privada e restrita a um grupo pequeno de pessoas. Desta maneira, embora não tenha sido tomada pelo conjunto do Tribunal, a decisão teve grave peso simbólico de estímulo à prática de desinformação no WhatsApp. Como evidenciado no texto e no processo eleitoral, o caráter “privado e limitado” alegado pelo ministro não corresponde à realidade.
Neste fogo cruzado, a omissão nas respostas tem ocorrido também da parte do próprio WhatsApp. Pressionados por escândalos internacionais, como o das eleições estadunidenses, e pela sociedade civil, Facebook e Google anunciaram medidas para essas eleições, como a parceria com agências de checagem e a derrubada de contas não autênticas.
Contudo, o WhatsApp avançou muito menos. Inicialmente, a empresa apenas inseriu o símbolo indicando que uma mensagem era “encaminhada” e limitou o número de destinatários de um compartilhamento a 20. Nas reuniões com o TSE, a presença de representantes da companhia (controlada pelo Facebook) foi menos frequente. Frente ao escândalo detonado pela denúncia da Folha, a firma informou nesta sexta que está banindo contas associadas a empresas que realizam envios em massa, e “tomando medidas legais cabíveis”. Em nota, acrescentou que derrubou centenas de milhares de contas durante as eleições com comportamento de spam (envio de diversas mensagens) e que podem ser usadas para espalhar desinformação.
Contudo, não houve qualquer detalhamento da eficácia de tais medidas. Além disso, em reunião com representantes do Conselho Consultivo do TSE, o WhatsApp se limitou a disponibilizar uma ferramenta para que o Tribunal possa monitorar e responder a acusações, mas não se dispôs a encontrar soluções para garantir que eventuais direitos de resposta cheguem aos usuários alcançados pelas notícias falsas originais.
Na omissão de autoridades e plataformas, a candidatura de Jair Bolsonaro e suas lideranças fazem um perigoso movimento de tentar descredibilizar o problema da desinformação e o questionamento do uso destes conteúdos, com o recurso de atribuir tudo a uma “conspiração de censura petista”. No caso da matéria da Folha de S. Paulo, passaram a atacar o jornal e a autora de maneira inaceitável. Desta forma, exercem um papel pedagógico extremamente negativo de mobilizar seus eleitores para ignorar essa grave questão, dificultando ainda mais um debate sério sobre as soluções.
Soluções?
Após o 1º turno, abriu-se o debate de possíveis medidas para mitigar a avalanche de desinformação no WhatsApp. A ONG Safernet, integrante do Conselho Consultivo do TSE, encaminhou documento à empresa com recomendações, como a redução da possibilidade de encaminhamento de mensagens para até cinco destinatários (como adotado pela empresa na Índia) e a limitação da possibilidade de criação de grupos e de participação neles por um mesmo usuário. A organização também defendeu que o WhatsApp adote sistemas de verificação de conteúdos e de indicação daquelas mensagens atestadas como falsas por agências de checagem, estabelecendo limitadores para seu compartilhamento em massa. Por fim, o documento de recomendações chama a empresa a atuar em conjunto com o TSE para evitar que seja um instrumento de massificação de notícias falsas e interferência eleitoral.
Em artigo publicado no The New York Times no dia 17, os professores Pablo Ortellado (USP) e Fabrício Benvenuto (UFMG) e Cristina Tardáguila (Agência Lupa) também defendem a limitação dos encaminhamentos (atualmente em 20), das listas de transmissão (hoje com até 256 contatos) e do tamanho dos grupos. O WhatsApp alega que não haveria tempo suficiente para isso. Os autores do texto rebatem dizendo que na Índia mudanças foram feitas em poucos dias após uma onda de linchamentos provocados por desinformação usando o aplicativo.
Para o advogado especialista em direito digital e consultor do TSE Danilo Doneda, essas medidas de restrição são importantes e o WhatsApp não pode somente ser tratado como uma tecnologia de comunicação privada. “Isso não tem a ver com comunicação interpessoal. O fato é que o WhatsApp pôde escalar um instrumento de comando e controle, em que você tem centros de controle que vão direcionando atividades de milhões de nós que vão agindo disseminando conteúdo a partir de um mecanismo que talvez tenha sido arquitetado. Quem vai administrar 9 mil grupos quando a gente conhece 2,3 mil pessoas na nossa vida?”, questionou, durante debate virtual promovido pelo Intervozes e o Congresso em Foco nesta quinta-feira.
Para Beatriz Kira, pesquisadora do instituto de pesquisa sobre tecnologias digitais InternetLab, também participante do debate virtual, em que pese a urgência do processo eleitoral, o debate sobre as soluções tem que envolver muito cuidado e discussão com a sociedade, para buscar um equilíbrio entre o combate a problemas como a desinformação sem afetar outras garantias, como o anonimato.
O desafio de dar respostas ao grave problema da desinformação, especialmente no WhatsApp mas não somente nele, em tempo tão exíguo, faz desta uma tarefa extremamente complexa. Seja no curto ou no médio prazo, as soluções devem ser pensadas sem a violação de outras garantias. No plano emergencial, autoridades precisam superar a omissão e investigar e punir pessoas envolvidas com a produção industrial e orquestrada desses conteúdos. Isso passa especialmente pela derrubada de mensagens falsas no WhatsApp, ao contrário da decisão mencionada acima. Sem punição dentro dos marcos do que a lei já prevê ou mesmo medidas concretas, cria-se um sentimento de impunidade para que práticas contatadas ou espontâneas sigam influenciando o pleito eleitoral, com consequências trágicas para o regime democrático brasileiro.
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