Querida vovó Alzira,
Eu fico daqui imaginando que cara a senhora faria se ouvisse uma outra mulher dizendo que “menino veste azul, e menina veste rosa”.
Se a senhora achasse que “menino veste azul, e menina veste rosa”, se achasse, portanto, que homens e mulheres têm lugares diferentes no mundo definidos pelo seu gênero, a começar pela cor das roupas que vestem, a senhora jamais teria resolvido assumir o comando de uma fazenda no sertão do Rio Grande do Norte quando se viu viúva, com a morte de seu marido, Thomaz, na grande pandemia de gripe espanhola. Jamais teria tido o atrevimento de passar a mandar ali naqueles rudes vaqueiros sertanejos. E jamais teria sido, então, alcançada pelas sufragistas que veriam na senhora o perfil exato, por esse atrevimento, para disputar a eleição municipal na cidade de Lages. Jamais teria conseguido vencer aquela eleição em 1928. Jamais teria se tornado, então, a primeira mulher a exercer um cargo no poder Executivo em toda a América Latina.
Mas eu sei que a senhora era uma mulher bonita e vaidosa. E que, portanto, teve em seu guarda-roupa vestidos cor de rosa. Como teve outros azuis. E de diversas outras cores. Porque a senhora sempre soube que cor de mulher é a cor que ela quiser. Porque lugar de mulher é o lugar que ela quiser. Porque não há limites de gênero para a atuação de ser humano nenhum no planeta.
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Foi assim que a senhora, muito elegantemente vestida, posou para a famosa foto que ilustra aqui essa carta. Lançando para a posteridade esse olhar desafiador, no centro desse grupo exclusivamente masculino que formaria o seu secretariado. Avisando a todos que, a partir daquele momento, mandaria em todos aqueles homens.
Eu não cheguei a conhecê-la, vovó Ziroca (posso chamá-la de “vovó Ziroca? Era assim que eu ouvia às vezes meu pai e meus tios se referirem carinhosamente à senhora). A senhora morreu um ano antes de eu nascer, em 1963. Minhas referências sobre a senhora sempre foram as histórias que meu pai e meus tios contavam, fascinados. Meu pai a idolatrava. E certamente as férias na sua fazenda Primavera, no sertão do Rio Grande do Norte, estão entre as melhores lembranças que ele tinha da sua infância. Talvez, porém, vovó Ziroca, isso tenha aumentado o caráter mítico da imagem que eu tenho. Minha heroína, minha Mulher Maravilha.
O que me espanta, vovó, neste dia 8 de janeiro, quando a humanidade celebra o Dia Internacional da Mulher, é que 94 anos depois da sua posse como prefeita de Lages, ainda seja possível que a frase dita no início desta carta seja dita por uma mulher. Me espanta que ainda existam tais riscos de retrocessos.
Que, a partir do espaço que novamente se deu para que se ascendesse tal tipo de mentalidade, tenham aumentado os índices de violência contra a mulher. Os índices de feminicídio. A violência contra as mulheres trans, contra a comunidade LGBTI+.
No complicado mundo de hoje, vovó, onde infelizmente qualquer idiota conseguiu tornar-se dono do seu próprio canal de expressão nas redes sociais, há sujeitos – pasme, com milhares de seguidores – que se ocupam em propagar o ódio contra as mulheres. A isso se chama misoginia. O sujeito se considera “macho”, mas odeia mulheres, só ama outros homens. Estranho isso, não? Vai entender…
Sempre me espanta a atualidade do seu discurso de posse, no dia 1º de janeiro de 1929. “Determinaram os acontecimentos sociais do nosso querido Rio Grande do Norte, na sua constante evolução da democracia, que a mulher, esta doce colaboradora do lar, se voltasse também para colaborar com outra feição na sua obra político-administrativa”, dizia a senhora.
Caramba! Há 94 anos, a senhora decretava a extinção dessa separação idiota e indesejada por gêneros, reservando á mulher somente o espaço de “colaboradora do lar” e abrindo para ela o restante das portas do mundo! E, 94 anos depois, esse processo de igualdade ainda está bem longe de ter sido alcançado! Quantas portas ainda permanecem fechadas!
“De outro modo, portanto, não poderia ser. As conquistas sociais, a evolução que ora se opera, abrem uma clareira no convencionalismo, fazendo ressurgir a nova faceta dos sagrados direitos da mulher”, prosseguia a senhora. Pois é, vovó, ainda não conseguimos conquistar essa tão óbvia igualdade de gênero.
Mas nós vamos conseguir. Seu espírito está presente. Cada vez mais forte. A senhora hoje empresta o nome ao Instituto Alziras – e eu é que tive a honra de autorizar o uso do seu nome –, que ajuda na formação de novas líderes políticas mulheres. Sua importância na história política do país vem sendo mais e mais resgatada.
Então, feliz Dia Internacional da Alzira, vovó Mulher!
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