No dia 3 de novembro de 2020, o Brasil celebra 90 anos da instituição do direito ao voto feminino, conquistado em 1930. Ainda que de modo muito restrito, as mulheres passaram a votar e exercer seu direito democrático. Apesar de todo esse tempo, ainda somos poucas decidindo nosso futuro nas casas legislativas do país. Levantamento da Procuradoria da Mulher do Senado com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre as eleições de 2016 e 2018, concluiu que o percentual de participação das mulheres em relação ao número de cargos eletivos dos estados não ultrapassa, nas diferentes unidades federativas, um quarto do total.
No Congresso Nacional, somos apenas 77 mulheres dentre 513 deputados. Já foi pior. Em 2014 éramos 55. Dos 353 candidatos ao Senado nas eleições de 2018, 62 eram mulheres e, dessas, somente sete se elegeram. Em 20 estados, nenhuma mulher foi eleita e em três deles nem houve candidatas. Em relação aos municípios, as mulheres governam apenas 12% das prefeituras, o que equivale a apenas 7% da população. Apesar disso, somos mais bem preparas e temos maior nível de escolaridade. Há várias pesquisas que apontam um preparo maior das mulheres para ocupar cargos públicos. Pesquisa do Instituto Alziras publicada no site Gênero e Número mostra que prefeitas do Brasil têm mais anos de estudo e experiência do que prefeitos, no entanto, governam municípios menores e mais pobres.
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Também é importante lembrar que, em 15 anos, o número de famílias chefiadas por mulheres cresceu 105%. As famílias formadas por uma mãe solteira, separada ou viúva e seus filhos já representam 15,3% de todas as formações familiares Brasil afora. E mais: de acordo com o Censo Escolar 2011, 5.494.267 estudantes não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. Um país de pais ausentes cuja imensa maioria de famílias é chefiada por mulheres, isso não se reflete nas urnas.
A baixa representatividade feminina é um problema relacionado à forma como a cultura política lida com a participação das mulheres nesse tema. Existe um contínuo discurso de que lugar de mulher não é na política, não é nos espaços públicos, não é nas decisões. Uma vez na política, elas enfrentam todo tipo de assédio e preconceito. Existe até mesmo um termo cunhado para exemplificar essas situações: “violência política de gênero”. E dessa forma, mulheres costumam não votar em mulheres. Mulheres não se reconhecem em outras mulheres como suas representantes capazes tal qual (ou melhor) que um homem.
Estamos às vésperas do primeiro turno das eleições, a primeira eleição municipal pós Marielle Franco, com várias candidaturas de mulheres promovendo o debate pela representatividade feminina. Porém, sem recursos, fazer campanha política e se tornar conhecida em tempo recorde é tarefa difícil. Matéria publicada na imprensa mostrou que, a três semanas do primeiro turno, os fundos eleitoral e partidário têm sido direcionados para uma parcela ínfima dos cerca de 550 mil candidatos a prefeito e vereador. Menos de 1% dos candidatos concentram 80% dos fundos públicos de campanha. De 549 mil postulantes no país, 4.600 deles receberam R$ 646 milhões dos fundos.
PublicidadeE a maior contradição de todas, em 2020, pela primeira vez nas eleições brasileiras, o número de candidatos autodeclarados negros é maior que o de brancos, correspondendo a 49,9% do total. Porém, a soma dos recursos repassados aos candidatos pretos e pardos é 35,7%, ainda distante de ser proporcional. Ou seja, na eleição de maioria negra, partidos investem mais nos homens brancos.
Como as mulheres, principalmente as recém-chegadas, periféricas, negras, as líderes populares pouco conhecidas do mainstream da política, vão concorrer com essa realidade? Se faltam recursos e se o poder econômico não está nas mãos das mulheres, se temos menor acesso às redes de influência e se existe uma pandemia de covid-19 reduzindo a presença nas ruas com o famoso corpo a corpo das campanhas, a única alternativa para as mulheres tem sido ocupar a internet. Ocupar as redes sociais, criar plataformas de mapeamento de candidatas, gerar indicadores e mostrar suas propostas para o maior número de pessoas virtualmente.
Iniciativas não faltam
A PartidA Feminista, um coletivo nacional que fomenta a maior participação de mulheres no poder, existe desde 2015 e lançou nessas eleições a segunda edição da plataforma virtual “Meu voto será Feminista”, que mapeia candidaturas pela ocupação feminista na política institucional. A campanha Meu Voto Será Feminista é uma iniciativa da PartidA Recife e também apresenta na internet um mosaico de candidaturas progressistas de todo Brasil para o eleitorado escolher.
Nas eleições de 2018, o mosaico feminista foi formado por 96 candidatas, de seis partidos (Psol, PT, PCdoB, PCB, PSB, Rede), em 16 estados. Do total, 14 candidaturas foram eleitas, sendo 24 mulheres no poder – duas das candidaturas foram coletivas (Juntas-PE e Bancada Ativista-SP). Outro exemplo de candidatura coletiva de mulheres que tem ocupado as redes sociais é a Somos Muitas.
Já o Vote Nelas, outra iniciativa que fomenta o voto em mulheres, lançou em 2019 a pesquisa “Jornada da candidata”, mostrando o que motiva as mulheres a se tornarem candidatas a um cargo público. Mesmo que carreguem diferentes bandeiras, afinal somos muitas e diversas, 55% de mulheres afirmaram que sua motivação é “acreditar que podem fazer a diferença”.
Elas no Poder atua para que as mulheres na política possam fortalecer suas atuações nos espaços de poder político. Oferecem pela internet formação e treinamento eleitoral a fim de melhor preparar as mulheres e suas candidaturas para vencer eleições. Lançaram esse ano, em parceria com o Update, a Plataforma Im.Pulsa on line, aberta e gratuita para inspirar, treinar e conectar uma nova geração de mulheres ensinando como fazer campanha nas redes e nas ruas com segurança.
Já o Goianas na Urna é um projeto suprapartidário composto por 31 candidatas, 41 embaixadoras e 20 ativistas que também reivindica o direito de sermos representadas. É a primeira escola de formação política digital voltada para mulheres em Goiás, que usa os recursos de vídeos e redes sociais para engajar seu público.
A Rede Umunna foi criada por cinco mulheres negras que acreditam que discutir e qualificar o debate político gera mudanças transformadoras. Surgiu para identificar as barreiras de elegibilidade de mulheres negras que são menos de 1% nas câmaras de vereadores do Brasil. Todas elas são especialistas em dados e mapeamento digital. O principal projeto da Rede é o Mulheres Negras Decidem, que se baseia em dados demográficos para concluir que, se mulheres negras são 27% da população brasileira, essa é a maior força eleitoral que temos no país. Portanto, decisória. A atuação se dá em duas frentes de trabalho: o engajamento cívico via internet e redes sociais com materiais educativos e o acompanhamento de pré-candidatas negras.
A Tenda é uma iniciativa de 2020 e se organiza basicamente no Instagram. Como a formação política para candidatas e equipes ocorre por videoconferências, elas selecionaram dez candidatas de todas as regiões do Brasil para atender durante todo o processo eleitoral das eleições municipais. Além disso, fornecem também atendimento psicológico para as candidatas em parceria com o Escuta Candidata, organizado pela Casa 1, que é um centro de cultura e acolhimento de pessoas LGBT.
Já a PANE – Plataforma Antirracista nas Eleições eleva o legado de Marielle Franco por meio de um conjunto de ferramentas e ações digitais com o objetivo de reconfigurar o sistema político atual. A plataforma foi desenvolvida pelo Instituto que leva o nome da vereadora e é presidido por sua irmã.
Vale citar, por fim, também iniciativas de audiovisual para potencializar a causa da representatividade feminina na política, todas disponíveis em canais virtuais. Me farei ouvir, por exemplo, filmado em 2019, é um documentário independente, 100% realizado por mulheres. Suas idealizadoras também lançaram o Manual da Mulher Candidata. Outro documentário, Sementes, retrata a insurgência de mulheres negras na política após a execução de Marielle Franco. O filme, disponível no YouTube, mostra vários depoimentos de como o assassinato da vereadora foi decisivo na motivação das mulheres em abraçar a política em prol de uma coletividade, na luta por direitos e por dignidade.
Mudando a realidade na prática
Há formas de vencer essas barreiras: fiscalizando a lei de cotas para candidaturas femininas, combatendo o machismo dentro dos partidos políticos, incentivando candidaturas reais (e não laranjas) de mulheres comprometidas com uma agenda pública de sustentabilidade, direitos e dignidade.
Há exemplos inspiradores no continente latino. O Chile acaba de passar por um plebiscito popular e terá a primeira Constituição do mundo construída de forma paritária entre homens e mulheres. Mulheres da Bolívia bateram recorde na eleição para o parlamento e conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%).
No México, em maio de 2019, o Congresso aprovou a “Lei da Paridade”, uma mudança na Constituição que ampliou ainda mais a paridade de gênero de 50%, que já era obrigatória na câmara federal, e passou a valer também para os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos órgãos federais, estaduais e municipais, além de órgãos autônomos.
Que as transformações no continente possam impulsionar mudanças no processo eleitoral que se aproxima, sobretudo para elegermos mulheres que atuem em defesa da vida de todas as mulheres.
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