Passava das 18 horas de sexta-feira (13), quando a assistente social Marlla Angélica Santos da Costa voltava do trabalho para casa, em Arniqueiras, região administrativa do Distrito Federal localizada a cerca de 30 km do Plano Piloto. Quando parou o carro em frente ao portão do prédio onde mora, a mulher negra de 39 anos foi surpreendida pelos gritos de dois homens que perambulavam pela rua. Sem entender o que diziam, questionou o motivo da gritaria. “Sua macaca”, “negra nojenta”, “vagabunda”. Aparentemente reclamavam que ela não os havia visto ao passar de carro do lado deles.
Ao ouvir os gritos, o filho de 17 anos da assistente social correu em socorro da mãe. Foi agredido por um dos homens com um soco na cara. Ao tentar proteger o filho, a mulher foi contida pelo outro homem, que puxou as tranças do seu cabelo afro e quase a derrubou no chão. Um deles ameaçou buscar em casa uma arma de fogo.
Diante da confusão, outras pessoas chegaram ao local, iniciando nova briga com os dois agressores. Marlla conseguiu, então, telefonar para a polícia. Foi então que os dois homens saíram de cena, fazendo deboche, segundo ela, da situação. Sem se preocuparem com a chegada dos policiais, pararam em um bar a poucos metros dali para beber cerveja. Lá mesmo foram presos e levados para a 21ª Delegacia de Polícia Civil, em Taguatinga, onde trocaram as agressões verbais pelo silêncio em seus depoimentos. Não responderam a qualquer pergunta.
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Punição mais dura
Os acusados são o vidraceiro Gustavo Vitório Silva, 34 anos, e o terraplanador Bruno César dos Santos, de 44. Os dois se tornaram, assim, os primeiros brasileiros a serem enquadrados na Lei 14.532/23, sancionada pelo presidente Lula no último dia 11, durante a cerimônia de posse das ministras Anielle Franco (Igualdade Racial) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas).
A nova lei equipara os crimes de injúria racial (cometido contra uma pessoa) com racismo (aquele cometido contra uma coletividade). Aumenta a pena para a injúria relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional.
A partir de agora, esse tipo de injúria poderá ser punido com reclusão de dois a cinco anos. A pena poderá ser dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. Antes, a punição era de um a três anos. A nova legislação reproduz o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em outubro do ano passado, equiparou a injúria racial ao racismo, tornando-a um crime inafiançável e imprescritível.
PublicidadeChoro e acolhimento
Os dois acusados deixaram a delegacia horas depois, após passarem pela audiência de custódia. Em liberdade condicional, estão proibidos de se aproximarem de Marlla e do filho adolescente dela. Também não podem deixar Brasília por mais de 30 dias nem mudar de endereço sem comunicar o fato à Justiça.
A assistente social conta que vive uma angústia que nunca havia experimentado. “Choro toda vez que lembro e vejo a imagem deles na minha frente, me ameaçando, me xingando, agredindo meu filho. Não posso dizer que está tudo bem. Mas fico feliz quando percebo que estou sendo acolhida”, disse Marlla ao Congresso em Foco.
Crime e castigo
Ela explica que resolveu denunciar os dois homens e tornar o caso público por questão de coerência, já que, como conselheira tutelar e assistente social, vivencia situações de violência no dia a dia. Para Marlla, é preciso que crimes como esse sejam denunciados e ganhem visibilidade para mudar a realidade histórica de racismo no Brasil.
“Espero que eles paguem pelo que fizeram e que isso diminua o racismo. Acabou o racismo recreativo, a brincadeira que constrange. Está na hora de parar com isso. Estamos cansados do discurso da pessoa que é pega dizer que a avó da avó era preta, que tem um primo preto. E, por isso, não são racistas. Eles não podem ficar impunes”, defende.
Marlla considera que a formação que recebeu em casa foi fundamental para denunciar os autores dos ataques racistas. Uma realidade que, admite, não faz parte da vida de muitas pessoas pretas como ela, que acabam não denunciando casos de racismo.
“Minha mãe me empoderou muito. Moramos anos atrás em um condomínio no Cruzeiro Novo (região administrativa de Brasília) em que éramos a única família preta. Ela sempre dizia que ninguém ia pisar na gente. Sei quem sou. Sou uma mulher cristã e muito amada, tenho bons amigos, pretos e brancos, mas mesmo assim fiquei baqueada”, afirma.
O Congresso em Foco procurou os advogados Juliano Abadio Caland, que representa Bruno, e Sirleison José de Sousa, que defende Gustavo. Segundo Juliano, os dois acusados negam ter cometido crime. “O Bruno reúne todos os requisitos legais para responder ao processo em liberdade. Tem residência e emprego fixo, é pai de quatro menores. Ele alega que houve um desentendimento e que nem conhecia a Marlla. Afirma categoricamente que não a ameaçou nem a agrediu verbalmente”, diz Juliano. A reportagem não conseguiu localizar Sirleison.
Inércia do Estado
Integrante da Coalizão Negra por Direitos e do Movimento Negro Unificado, o cientista político Derson Maia é amigo de Marlla. Gravou um vídeo com ela, para denunciar o episódio. Ele entende que a mudança na legislação representa um avanço importante, mas está longe de encerrar o racismo no país.
“Nos últimos quatro anos, com a barbárie e as arbitrariedades que enfrentamos, multiplicaram-se os crimes de racismo e injúria racial sob completa inércia das instituições do Estado brasileiro, seja no aparato policial como nas estruturas do Judiciário”, avalia.
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Derson critica a omissão da Procuradoria-Geral da República nos últimos anos diante, por exemplo, de “ações criminosas” do ex-presidente da Fundação Palmares Sergio Camargo, negacionista do racismo no país. Além de denunciar, ele considera que é fundamental que o Estado e a sociedade em geral acolham as vítimas.
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“A Marlla não pode se sentir sozinha. Não pode ficar vulnerável a esses criminosos. Existe compromisso público das entidades que estão acompanhando o caso. Não vamos permitir que isso passe impunemente. Não é um caso isolado, afeta toda a comunidade”, ressalta.
Novidades da nova lei
O advogado Matheus Mayer, responsável pela defesa de Marlla, já atuou em outros processos de injúria racial e considera positiva a nova mudança na lei. “Esse caso se enquadra no novo molde do crime de racismo. Com a injúria racial, era uma ação privada, mediante apresentação de queixa da vítima. Agora, com a mudança na lei, é uma ação pública incondicionada, quem dá início é o Ministério Público”, explica o advogado. “É positivo porque quem tem a práxis da acusação é o Ministério Público. O advogado criminal atua na defesa”, acrescenta.
Para Matheus, o conjunto de provas contra os dois acusados é consistente para resultar em condenação. “Temos laudo de corpo de delito da agressão ao adolescente e testemunhas. Os dois foram presos em flagrante, porque as autoridades atestaram que houve crime e o delegado concordou”, diz o advogado.
Democracia
A delegada-chefe adjunta na Decrin, unidade especializada em crimes contra populações minorizadas no Distrito Federal, Cyntia Carvalho e Silva, considera que a alteração na lei representa um caminho para a consolidação da democracia. Antes, observa a delegada, a Lei 7.716/89 só previa crimes de racismo e equiparados. Agora, houve a criação da injúria racial em uma lei especial, isto é, fora do Código Penal, caracterizada pela conduta de ofender alguém em razão da raça, cor, etnia ou procedência nacional.
“A pena foi aumentada para dois a cinco anos de reclusão e multa, não cabendo fiança nem prescrição da pena, pela interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 28 de janeiro de 2021, no HC 154.248/DF, a que atribuiu efeitos transcendentes, equiparando o crime de injúria racial ao racismo”, explica a delegada em artigo exclusivo publicado nesta terça-feira no Congresso em Foco.
A primeira versão do projeto foi apresentada em 2015 pelos então deputados Bebeto e Tia Eron. O Projeto de Lei 4566/21 foi enviado para sanção presidencial na forma de substitutivo do Senado de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS).
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