Carlos Cardoso de Oliveira Júnior *
Ao ensejo do Bicentenário da Independência do Brasil e a caminho dos 133 anos da Proclamação da República, afiguram-se oportunas algumas ponderações a respeito da nossa experiência republicana.
Inicialmente, cumpre assinalar que vivemos sob a égide da mais completa e detalhada Constituição Federal da nossa história. Depois do sombrio período da ditadura militar, que sobreveio com o golpe de estado de 1964, a luta pela democratização do país culminou com a promulgação, em 05 de outubro de 1988, da atual Constituição, elaborada e promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte eleita para essa finalidade.
A Constituição Federal consagrou a República como forma de governo e a desenhou como Estado Democrático de Direito. Para tanto, elencou inúmeros princípios que balizam a sua existência e o seu funcionamento.
Nessa arquitetura jurídica, foi conferido ao Supremo Tribunal Federal o papel de Guardião da Constituição Federal, competindo-lhe dirimir, como última ou única instância judicial, os conflitos que envolvam diretamente temas constitucionais.
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Há 34 anos, portanto, ainda que convivendo com muitas adversidades e imperfeições, vivemos a mais longa experiência democrática enquanto nação soberana.
Essa vivência, entretanto, vem passando por um estresse acentuado nos últimos anos, em razão de sucessivas crises, de diferentes intensidades, que têm perpassado a vida econômica, política, social e moral do país.
Há pelo menos 8 anos a economia brasileira patina entre o baixo crescimento, a recessão e a estagnação, o que resultou na existência, hoje, de 11,3 milhões de desempregados. Além disso, contamos hoje com 38.7 milhões de trabalhadores informais, incluídas aqui as pessoas subocupadas e desalentadas (que desistiram de procurar ocupação), sem nenhuma proteção trabalhista e previdenciária.
Esses números explicam a explosão de moradores de rua pelo país afora e a persistente queda de renda, tudo agravado por índices elevadíssimos de inflação, notadamente em relação aos produtos alimentícios, cujo peso no orçamento familiar das camadas sociais menos favorecidas é muito grande.
A fome voltou a crescer no Brasil. Dados estatísticos revelam que 40 % da população convive com algum grau de deficiência alimentar e nutricional. O quadro social é, por isso, desolador.
Enquanto isso, constatamos que o mundo político não dialoga com essa cruel realidade. Temos um presidente da república que não cultiva o hábito de trabalhar, preferindo fazer Lives onde veicula seus preconceitos e inverdades, e que participa, com rara assiduidade, inclusive em dias úteis, de animadas carreatas, motociatas e passeios de jet ski, indiferente aos preços exorbitantes dos combustíveis e ao estado de pobreza e miserabilidade a que estão relegados dezenas de milhões de brasileiros.
Por outro lado, o Poder Legislativo, por meio da quase totalidade de seus integrantes, refestela-se com verbas tão bilionárias quanto indecorosas para financiar seus partidos políticos e campanhas eleitorais.
Registre-se, ainda, o ressurgimento nesta legislatura das famigeradas Emendas do Relator, responsáveis pela distribuição aos deputados e senadores ( com raras exceções) nos anos 2020, 2021 e 2022 de um total de 54,6 bilhões de reais em verbas orçamentárias, consubstanciando mais uma jabuticaba no universo político tupiniquim, que ganhou contornos de um orçamento secreto, posto que essa fortuna de verbas públicas foi e continua sendo disponibilizada pelos parlamentares aos seus redutos eleitorais sem qualquer supervisão das instituições de fiscalização.
E tudo isso sob as barbas do Supremo Tribunal Federal, que muito timidamente vem tomando algumas iniciativas para estabelecer algum tipo de controle sobre esse paradoxo republicano corretamente apelidado de orçamento secreto.
Essa postura do STF lembra aquele dito popular “Me engana que eu gosto”.
Todos sabemos no que isso resultará.
Como se vê, a rigor, quem governa o país, no plano federal, são as forças políticas dominantes no Congresso Nacional. Como se sabe, quem controla o orçamento, controla o governo. Trata-se de um parlamentarismo de ocasião, resultante de um governo federal emparedado pelos seus problemas jurídicos e policiais, incompetente e desinteressado em resolver os grandes problemas nacionais.
Recentemente, os brutais assassinatos de um jornalista inglês e de um ambientalista nos rincões da Amazônia colocou mais uma vez em evidência a disseminação do crime organizado naquela região, cuja impunidade está na raiz da destruição em curso do maior bioma brasileiro.
E nada de estratégico está sendo formulado e implementado para salvar o Brasil e o mundo do desastre climático que ali está se desenrolando.
Pelo contrário, o atual presidente da república, com a sua omissão e deliberada fragilização dos órgãos federais dessa região, tem estimulado a destruição da floresta amazônica e a violação dos direitos, inclusive territoriais, das populações indígenas ali instaladas há séculos.
Ou seja, 59% do território nacional está crescentemente caindo sob o domínio da criminalidade organizada, onde comprovadamente já atuam todas as principais organizações criminosas brasileiras, dos países vizinhos e inclusive de um grande cartel de drogas do México.
Igualmente perniciosa tem sido a captura de instituições públicas fundamentais para o respeito dos princípios republicanos consagrados no texto constitucional.
Isso, ao lado de decisões juridicamente descabidas tomadas pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, deu uma contribuição decisiva para o desmantelamento da luta anticorrupção, que conheceu um impulso historicamente inédito entre nós a partir dos casos que ficaram conhecidos como Mensalão e Petrolão.
Ao lado disso, aproveitando a dispersão e desmobilização da opinião pública durante a pandemia instalada no mundo, e que foi especialmente devastadora no Brasil, diferentes representações partidárias, da esquerda à direita, unidas no propósito inconfessável de garantir a impunidade aos crimes de colarinho branco, principalmente aqueles envolvendo a subtração de dinheiro público, vêm articulando a aprovação de mudanças legislativas enfraquecedoras do nosso sistema de justiça anticorrupção.
A mais recente e emblemática delas foi a reforma da Lei de Improbidade Administrativa, apropriadamente nominada Lei da Impunidade, caracterizando um retrocesso de 30 anos na defesa do patrimônio público e dos princípios constitucionais que disciplinam a administração pública.
E esse apetite por impunidade é insaciável. Várias outras iniciativas legislativas estão em andamento para anular qualquer sonho de combater a corrupção com um mínimo de eficácia.
Está se tornando virtualmente impossível punir um ladrão do dinheiro público.
Parafraseando um notável jornalista, o Brasil é um país onde graça a corrupção, mas que não tem corruptos.
A esse propósito, aliás, chama a atenção a caça que está sendo empreendida contra os principais protagonistas da Operação Lava Jato, com base em argumentos intelectualmente desonestos e juridicamente inconsistentes, por parte de personagens que querem alcançar o estrelato institucional no próximo governo federal.
Acrescente-se a esse quadro as crises entre os poderes que vêm se sucedendo, com conflitos constantes entre o Poder Executivo e o Supremo Tribunal Federal e entre este e o Congresso Nacional.
Apesar de decisões acertadas do STF em algumas questões envolvendo aspectos relevantes do regime democrático, é inegável que, por vezes, o STF tem pecado por excessivo ativismo judicial, paralisando e ou alterando iniciativas próprias dos outros poderes, tornando disfuncional o já complicado funcionamento das nossas instituições republicanas.
Essas intervenções atabalhoadas do STF e as várias decisões criminais que, na prática, desmantelaram o nosso arcabouço jurídico-institucional anticorrupção explicam a perda de confiança e credibilidade da nossa Corte Suprema junto a grandes parcelas da população.
E isso é péssimo para a Democracia e para a nossa República.
*Carlos Cardoso de Oliveira Júnior é procurador de Justiça Aposentado do Ministério Público de São Paulo e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
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