Em 1941, o então presidente Getúlio Vargas baixou o decreto 3.199, que proibia as mulheres de jogarem futebol. Na verdade, dizia que elas não poderiam praticar esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”. Estabelecer que “condições” eram compatíveis com a natureza feminina era, é claro, uma atribuição dos homens.
Esse decreto vigorou até 1979. Ou seja, a seleção masculina de futebol já era então tricampeã do mundo. O hoje presidente Lula já comandava greves no ABC começando a ferir de morte a ditadura militar. Já tínhamos ido à Lua. Isso faz somente 44 anos.
Hoje, somente os 20 times que disputam a série A são obrigados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a ter uma equipe feminina. A intenção da CBF é estender essa obrigação para as demais séries até 2027. Quando, então, chegaríamos a 127 equipes de mulheres. Em 2019, o Brasil tinha mais de mil times de futebol masculino.
Mas, muito mais do que sermos um país onde mulher jogar futebol era algo proibido por lei até há outro dia, nós somos um país que ainda ontem discutia se um feminicídio pode ser justificado por legítima defesa da honra. Na terça-feira (1) desta semana (desta semana!), a Suprema Corte julgava isso. Ou seja, há menos de 24 horas do momento em que se estabeleceu que “lavar a honra com sangue” é algo inconstitucional.
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Somos um país no qual um motorista de aplicativo estuprou e largou inconsciente na rua uma mulher esta semana. As estatísticas mostram que, em 2022, uma mulher era vítima de feminicídio no Brasil a cada seis horas.
Somente agora há no país uma lei que obriga a equiparação salarial entre homens e mulheres. Algo que somente agora vamos verificar de que forma irá se dar na prática.
PublicidadeSó tivemos uma mulher presidente da República. Dos 513 deputados federais, somente 91 são mulheres. Quinze entre 81 senadores. Somente 658 prefeitas em mais de cinco mil municípios.
Por onde quer que se olhe, a desigualdade brasileira entre homens e mulheres é visível. Como isso poderia ser diferente dentro das quatro linhas de um campo de futebol?
Por tudo isso, o que terminou na manhã desta terça-feira na Austrália e na Nova Zelândia é uma tremenda vitória.
As bravas meninas do Brasil se exibiram na principal televisão do país. E obtiveram picos de audiência. Ajudaram a que retomássemos o orgulho de voltar a usar nossas cores. Introduziram no universo masculino da bola a narração e os comentários de vozes femininas.
Assim, o que importa menos é se seguirão agora na competição ou se voltarão para casa. Porque elas já foram capazes de fazer com que a casa para a qual retornam já não seja mais a mesma.
Antes do empate com a Jamaica, nossa grande Marta falou disso, com emoção, em uma entrevista. Apontou para os jornalistas à sua frente e disse: “Vocês não mostravam nossos jogos”. Continuou dizendo que ela mesma não tinha uma ídola, a mulher em quem se espelhar quando começou a jogar bola. Hoje, ela mesma sai nas ruas e é abraçada por meninas que sonham em ser iguais a ela. Tudo isso faz de Marta e das demais meninas da nossa seleção campeãs!
É fundamental que entendamos isso e não pratiquemos com elas o nosso esporte favorito, que é gostar de ganhar. Não temos o direito ainda nem de exigir delas desempenho igual ao de outras seleções de países onde o futebol entre mulheres há muito é jogado e admirado. Não temos o direito de querer compará-las com os mimados e milionários garotos do time masculino. Temos a obrigação de exigir mais deles. Temos a obrigação de admirá-las.
É preciso entender a imensa conquista que já foi chamar a atenção para o esporte feminino como fizemos. A imensa conquista de termos tornado menos masculino esse mundo do esporte.
Se avançarmos desse ponto, essas meninas e as próximas que virão depois delas, nos darão muita alegria.
Como diz Gilberto Gil, que nossa porção mulher que até então se resguardara seja a melhor em nós a partir de agora!
Vivam as meninas do Brasil!
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