Renato Henrique de Gaspi*
Nessas eleições o Brasil decidiu implodir, pelo voto popular, um bom pedaço de sua classe política. Eternos caciques regionais foram demovidos de seus cargos, a divisão partidária e ideológica passou por profundo realinhamento e um novo campo, antes nas franjas dos pleitos tupiniquins, se formou com força avassaladora. O campo da extrema-direita no Brasil, que pela sua composição parece mambembe e desastrada, se consolidou como uma das maiores forças políticas do país.
Muitas foram as comparações com as eleições de 1989. Válidas, essas comparações necessitam de um pouco de parcimônia. Em 1989 aconteceu a primeira eleição direta após a redemocratização, a internet não era um meio de comunicação relevante e naquele momento pairava no ar um sentimento de euforia. Em 2018, por outro lado, presenciamos a eleição do cansaço, da rejeição, do eleitor que se sente saco de pancada, sub-representado, subtraído, sub-empregado.
Muitos dos que fazem a comparação entre 1989 e 2018 acertam em dizer que houve um aglutinamento das forças conservadoras em volta de um candidato de um partido desconhecido, e que a forças de esquerda ficaram polarizadas entre as figuras de Lula (PT) e Brizola (PDT). No segundo turno de 1989 como no de 2018, um candidato com rejeição menor do que a da candidatura petista ficou de fora do segundo turno e o candidato conservador foi eleito com confortável margem.
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As diferenças também são claras. Por mais defeitos que Collor possa ter, é difícil chama-lo de fascista. Collor era um liberal-conservador paladino contrário à corrupção de vida pregressa pouco conhecida. Seu paralelo nessas eleições é um deputado com 28 anos de casa, poucos projetos aprovados e um milagre de multiplicação de patrimônio. Ademais, Bolsonaro é defensor da tortura e da ditadura (terceiro trilho nas eleições de 1989), enquanto Collor dizia representar a modernidade. Os discursos são bastante diferentes.
A eleição de 2018 reverbera ecos de 1989. As duas até chegam a rimar, mas a de 2018 merece ser entendida como uma questão à parte. O pleito recente provocou reconfigurações profundas na espinha dorsal do sistema política brasileiro, e promete ter impactos graves para o chamado campo progressista.
PublicidadeO legislativo, divisão partidária e o fim da “República do Real”
O filósofo e analista político Marcos Nobre (talvez o que melhor tem capturado o momento atua) propõe que chegamos ao fim da “República do Real”, um arranjo partidário que opôs PT e PSDB como maiores forças representativas de, respectivamente, centro-esquerda e centro-direita após a consolidação do Plano Real e da eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994 [1]. Durante vinte anos, essa oposição regeu a luta democrática no país. Nenhum dos dois partidos ameaçava a democracia, mas as campanhas se tornaram cada vez mais violentas e divisivas.
Ao mesmo tempo, o legislativo se fragmentava entre esses dois partidos com bancadas significativas, muitos partidos nanicos nas franjas (como o defunto Prona e algumas siglas de uma esquerda mais radical) e um grande centro que Nobre chama de “Pemedebismo”[2]. Apesar do nome, esse grande bloco não está circunscrito ao (P)MDB. Essa quimera partidária é composta por uma porção de partidos aideológicos e fisiológicos que parecem entoar a frase “há governo, sou a favor”.
Nos vinte anos de república do real (1994-2014), o pemedebismo logrou por volta de 2/5 dos assentos na Câmara dos Deputados[3] e sempre impediu que uma maioria pura se formasse para dar base aos governos de PT e PSDB.
A formação desse centrão parece um desenvolvimento lógico de uma democracia jovem e que possui grande número de denominações partidárias. Ademais, incentivos abundam para que partidos sem grande filiação ideológica se formem de olho em fatias do fundo partidário, preciosos segundos na propaganda eleitoral gratuita e, se suficientemente bem-sucedidos, cargos públicos em ministérios, agências e empresas estatais.
O tamanho da influência dessa fração legislativa deve ser sublinhado. Todos os governos da sexta república tiveram de lidar e negociar com esse grupo nada coeso para poder fazer funcionar a máquina pública.
À primeira vista, a situação parece bastante diferente após o último pleito. A parcela de candidatos eleitos pela primeira vez para o legislativo federal é de quase 50% da câmara. Um terço desses é filiado ao PSL, partido de Jair Bolsonaro que saltou de apenas um parlamentar para 52 deputados, compondo a segunda maior bancada monopartidária do congresso atrás apenas do PT com 56.
Por sua vez, o pemedebismo se realinha. O próprio P(MDB) saiu de 66 deputados para apenas 34, no rescaldo do breve e desastroso governo de Michel Temer.
Ainda assim, o centrão aideológico e potencialmente governista conta com 239 deputados (47% da Câmara)[4]. Resta ver o que esse superbloco fará com tanto poder e se atuará de maneira concertada, o que parece improvável. Com o debacle do (P)MDB, a liderança desse bloco está em aberto. No entanto, parece que o DEM de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara e que vem renegociando desde já sua reeleição, tem vantagem nessa transição. Antagonizar com o atual presidente da Câmara em sua tentativa de reeleição pode custar caro ao governo de Jair Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, a eleição de Bolsonaro pode acabar por galvanizar um bloco de centro-esquerda em defesa dos valores democráticos, da liberdade de expressão e acadêmica, dos direitos das minorias e dos direitos sociais, o que é tema da próxima seção.
De todas as maneiras, aquela velha organização de forças em torno de PT e PSDB parece morta e o papel desses dois partidos no pós-eleição é incerto. Por um lado, temos um PT combalido e que, apesar de ter uma grande bancada monopartidária, não conseguirá fazer oposição sozinho, afinal, seus 56 deputados chegam a pouco mais de 10% da Câmara.
Com dificuldades de fazer alianças e tendo gerado mágoas dentro de seu próprio campo, o partido tem uma escolha difícil entre manter a hegemonia ou criar, em franco diálogo com seus opositores do mesmo campo, uma grande frente em favor da democracia. O PSDB parece ainda mais perdido. Com crescentes fraturas internas, o partido deve decidir entre sua cúpula mais liberal-democrática e suas bases mais conservadoras. O partido é agora mais regional (Sul-Sudeste) e seu futuro ideológico é incerto.
O campo progressista
Nos livros de história, essa eleição provavelmente será um marco para o campo progressista brasileiro. Talvez menos pela eleição em si e mais pelo terceiro turno que já começou.
O campo progressista se vê entre o completo desfalecimento e a galvanização. Se por um lado o PT conseguiu ainda ser a maior bancada monopartidária da câmara, o resultado é o pior desde 1994, auge do plano Real e da hegemonia tucana, quando o partido logrou 50 cadeiras. O número de 56 ainda pode aumentar se alguns dos deputados de esquerda cujos partidos não ultrapassaram a cláusula de barreira migrarem para o PT. De todas as formas, o partido não deve superar o número de 65 deputados ao momento do início da nova legislatura em fevereiro.
Sendo assim, e contando que o centrão pemedebista (e agora mais “demista” do que nunca) cumprirá com seu papel de ser governo, o PT terá de fazer uma opção: manter-se fiel ao projeto hegemonista e tentar se cacifar sozinho para fazer oposição, ou se unir a outros partidos do campo da centro-esquerda (opção que, mesmo difícil, continua em aberto)[5].
Sobre os outros partidos de centro-esquerda, devemos começar pelo PDT de Ciro Gomes. Com história partidária confusa, os Ferreira Gomes se filiam ao PDT de Leonel Brizola em setembro de 2015. A partir dali o partido se tornou absolutamente central para novas (e algumas velhas) figuras de centro e centro-esquerda que desejavam se distanciar do PT.
Com o país em crise e em um conturbado governo Dilma Rousseff, Ciro se alçou a uma forte candidatura presidencial ao ser enfático em sua defesa da constituição e ferrenho opositor ao impeachment de Dilma Rousseff. O partido ainda ganhou a adesão de Kátia Abreu (que viveu certa lua de mel com a militância petista durante o processo de impeachment) e de jovens e promissores quadros como Túlio Gadelha e Tabata Amaral (ambos deputados eleitos com votação expressiva no pleito de 2018).
A relação PDT e PT azedou cedo no pleito. Depois de certas idas e vindas e da rejeição de qualquer negociação que colocasse Ciro como cabeça de uma chapa única da centro-esquerda, o pedetista foi buscar apoio em outros lugares e se viu tolhido pelo PT. O caso mais emblemático foi a declaração de neutralidade do PSB, que custou a candidatura petista ao governo de Pernambuco de Marília Arraes[6], dano colateral no isolamento de Ciro.
A militância do PT hoje acha Ciro auto-interessado e oportunista, impressão que se agravou com a viagem do presidenciável à Europa logo após o encerramento do primeiro turno, e seu apoio morno a Haddad (que ficou só as entrelinhas).
Por outro lado, ciristas acreditam que o cearense era o único capaz de vencer Bolsonaro no segundo turno, atribuindo a candidatura de Fernando Haddad apenas à vaidade de Lula e à falta de visão da cúpula petista. Para que haja adesão dos 28 deputados pedetistas eleitos, uma futura frente oposicionista terá de aparar essas arestas entre caciques, baixo clero e militância.
Outro ator importante é o PSB. Com 32 deputados, o partido fez alguns acenos de que pode voltar a ser uma força de centro-esquerda e abandonar seus anos de fisiologismo após a morte de Miguel Arraes. As sinalizações do partido, contudo, não permitem conclusões de fato. Não se sabe se o partido fará oposição frontal a Bolsonaro, mas isso não está excluído. Se levarmos as últimas declarações da cúpula do partido isso deve acontecer.
Em linhas gerais, essa frente somaria (com adesão de deputados egressos do PCdoB e talvez dos nanicos Avante, PROS, PPL, Rede, entre outros) entre 125 e 150 deputados. Esse número é um começo, mas não chega ao mínimo necessário para barrar a passagem de emendas constitucionais.
Se aproximadamente 130 deputados não bastam, 56 são praticamente irrelevantes para termos práticos. Se as arestas da esquerda não forem aparadas, é possível que Bolsonaro tenha vida extremamente tranquila como presidente da república, cometa excessos irreparáveis e que o campo progressista se veja praticamente aniquilado politicamente na legislatura 2019-2023.
O trabalho mais importante de um campo de esquerda nessa próxima legislatura é se preparar para uma eventual crise do governo Bolsonaro. O centrão, que provavelmente estará com o ex-capitão desde a primeira hora, tem a tendência de se preservar e abandonar governos ao primeiro sinal de dificuldade. Para que esse tipo de crise culmine em uma reversão da correlação de forças políticas em terras tupiniquins, o campo progressista deve estar preparado e grande o suficiente para dar o direcionamento ideológico.
A articulação recente promovida pelo PDT, PSB e PCdoB demonstram que a desconfiança com relação ao PT não se limita às queixas dos Ferreira Gomes, mas são mais plurais, diversas e difusas. Seja como for, mesmo que não necessariamente alinhados, esses partidos devem votar juntos por conta de suas afinidades ideológicas e pelo dever, outorgado por seus eleitores, de fazer oposição a algumas das principais pautas propostas na primeira hora pelo presidente-eleito.
A diferença deverá se dar no discurso, mas a divisão pode gerar mais uma derrota nas eleições municipais de 2020 e no pleito de 2022. O desenho das eleições vindouras está sendo disputado.
Nesse momento, é indiferente que Ciro não tenha tirado 25 milhões de votos da cartola para Haddad e também é indiferente que o PT tenha sabotado ou não a candidatura pedetista desde a primeira hora. O que importa é que isso fique para trás. A existência de uma oposição depende disso. O preço das rusgas pode ser a irrelevância política do campo e retrocessos irreversíveis para o país.
*Renato Henrique de Gaspi é graduado pela FACAMP (Faculdade de Campinas) e mestre pela Universidade de Zhejiang (República Popular da China), ambos em Relações Internacionais. Atualmente cursa o Mestrado em Ciência e Economia Política na Universidade Centro-Europeia (Hungria) e tem particular interesse sobre a Economia Política do Desenvolvimento e Política Eleitoral Contemporânea
[1] Nobre, M., 2018. Bolsonaro não é como Trump. É como Duterte, nas Filipinas, ou Erdogan, na Turquia. Expresso Portugal. [online] Disponível em: https://expresso.sapo.pt/internacional/2018-10-26-Bolsonaro-nao-e-como-Trump.-E-como-Duterte-nas-Filipinas-ou-Erdogan-na-Turquia#gs.fKG9QGw
[2] Nobre, M., 2013. Imobilismo Em Movimento: Da Abertura democrática Ao Governo Dilma. São Paulo: Companhia Das Letras.
[3] Mais estudos são necessários para aumentar a exatidão dessa estimativa. São considerados ‘pemedebistas’ os partidos que, mesmo ideologicamente distintos, faziam parte das bases de governo tanto de PT quanto de PSDB durante os vinte anos aqui colocados. Liderados pelo (P)MDB, també compõem esse ‘centrão’ os seguintes partidos: PR, PL (extinto), PDS (extinto), DEM, PSC, PTB (pós-1998), PRB, PSD. O conceito de Nobre é mais amplo. Aqui, me limito ao entendimento de pemedebismo como o blocão governista.
[4] Estão contados: PP, MDB, PSD, PR, PRB, DEM, SD, PODE, PTB e PSC.
[5] Essa opção ganhou tons dramáticos nos últimos dias. Três dos maiores partidos desse campo já iniciaram negociações sem a presença do Partido dos Trabalhadores, revelando que as estratégias do partido fizeram mais do que apenas isolar a candidatura de Ciro Gomes, mas também geraram certa
desconfiança inclusive no PCdoB da ex-candidata à vice-presidência Manuela D’ávila.
[6] Marília Arraes acabou por se eleger a segunda deputada federal mais votada do estado de Pernambuco, atrás apenas de João Campos (PSB-PE), filho do ex-governador Eduardo Campos.
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