Por André Sather e Renato Ferreira*
O ano de 2022 trouxe a primeira queda no número de filiados a partidos políticos no Brasil entre dois anos de eleições gerais desde o ciclo 2002-2006. Se em 2018 havia 15.964.894 filiados, em 2022 o número caiu para 15.838.326. Uma queda bastante discreta em termos absolutos, já que inferior a 1%, mas que altera uma tendência de expansão constante que havia durado 12 anos ou 3 ciclos eleitorais completos.
Além disso, se se leva em conta o aumento importante do eleitorado apto para votar (de 147.306.275 em 2018 para 156.454.011 em 2022), da ordem de 6,2%, a queda proporcional no número de filiados passa a ter uma dimensão um pouco maior. Se em 2018 os filiados eram 10,8% dos eleitores aptos, em 2022 os filiados passaram a equivaler a 10,1% dos aptos. Uma retração um pouco mais significativa de 6,5% na proporção observada em 2018.
A queda na filiação partidária, apesar de aumento importante no eleitorado apto total, lança uma nova luz sobre as eleições de 2022, marcadas pela clara importância do voto “anti”. Na corrida presidencial, ficou evidente, especialmente no 2º turno, mas não apenas nele, que o principal argumento do candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, era a rejeição ao outro candidato, Lula. Da mesma forma, Lula investiu na rejeição a Bolsonaro e não é exagero dizer que sua vitória tem muito a ver com os índices de rejeição maiores atingidos pelo atual Presidente, em comparação com os do agora Presidente eleito.
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As evidências anedóticas, com seu proverbial poder de síntese, também ressaltam como o voto “anti” foi um fator fundamental neste ano. A vitória de Lula fez com que a música “Tá na hora do Jair já ir embora” alcançasse o 1º lugar do Spotify no Brasil, além de liderar o ranking viral global da plataforma, logo após a vitória. Um jingle totalmente focado na rejeição ao adversário. Bolsonaro, por sua vez, investiu todo o tempo nos supostos riscos que a eleição de Lula representaria e alguns de seus apoiadores seguem mobilizados contra o vencedor, ainda hoje, mesmo na ausência de indícios de fraude eleitoral.
Destaque-se que o voto “anti” não esteve presente apenas na eleição presidencial. Um dos debates para o Governo do Estado do Rio Grande do Sul foi emblemático, quando a insistência no voto “anti” teve o seu momento mais gráfico e memético: um dos candidatos insistiu inúmeras vezes que tinha ideias “muito melhores que as do outro”, sem esclarecer minimamente que ideias seriam essas…
PublicidadeÉ claro que o destaque ao voto que é muito mais contra um candidato do que a favor de outro não é uma novidade absoluta das eleições de 2022. O próprio Bolsonaro, em 2018, foi eleito basicamente pela rejeição ao Partido dos Trabalhadores e com um discurso que se alinhava em torno da ideia de ser “contra tudo o que está aí”, a famosa “antipolítica”. 2022, porém, parece ter intensificado esse processo.
Ademais, a queda no número de eleitores filiados apesar do aumento no quantitativo de eleitores aptos pode significar também a ascensão de novas formas de participação, à margem dos partidos. De fato, associações voltadas à “renovação política” deram as caras a partir dos movimentos de 2013 e, especialmente em 2018, alguns candidatos se elegeram vinculados inclusive formalmente a essas associações. Elas se encaixaram transversalmente em relação aos partidos, numa convivência nem sempre tranquila e, embora possam ter conferido alguma oxigenação alternativa ao sistema político (em que se pese o fato de que essas parecem não ter tido o mesmo efeito em 2022).
O problema político e social de ter uma participação mais voltada ao voto “anti” do que a qualquer tipo de construção ou atuação orgânica em partidos políticos é a dificuldade de gerar consensos, legitimidade em torno de políticas públicas e novos quadros. A política precisa, claro, ter a capacidade de formar grandes coalizões contra ameaças, em especial ameaças à própria democracia. No entanto, é apenas a partir da discussão organizada de políticas e da formação de lideranças que é possível (re)construir o que nosso país perdeu em meio a sucessivas crises políticas e econômicas.
Partidos são uma solução organizativa para os regimes democráticos. A partir deles, as sociedades estabelecem as condições dos antagonismos sociais e criam a possibilidade do caminho político de solução de controvérsias, possibilitando a concretização do pluralismo – um sistema integrado de forças estruturais conflitantes. O partido quer ver sua visão de sociedade aprovada e aplicada universalmente, a partir do Estado. Já o voto “anti”, ao contrário, deseja que o seu candidato triunfe e, à frente do Estado, submeta-o à suas propostas, eliminando a possibilidade do contrário. Pelos partidos, busca-se a solução dos antagonismos pelo debate – os outros são adversários, não inimigos. O voto “anti” trabalha com a noção radical de nós contra eles. Esse tipo de visão pode ajudar a explicar, por exemplo, a insistência de alguns derrotados em permanecerem mobilizados, com base na plataforma de pedir às Forças Armadas que derrubem o Estado vigente para implantar outra ordem social, de origem e escopo autoritário. Por isso é relevante pensarmos sobre o sentido da queda da quantidade de filiados.
Os indícios de que as eleições de 2022 foram totalmente focadas no voto “anti” e o fato de que houve uma incomum queda na quantidade de pessoas que participam do dia a dia de partidos políticos devem ser alvo de reflexão. Eles podem representar um problema no médio prazo e até mesmo ajudar a entender reações sociais mais extremadas ao resultado das eleições. Reconstruir o país é tarefa que vai exigir não apenas união e pacificação, mas também participação organizada na política.
* André Sather é economista, mestre em Comunicação Social e em Informática e doutor em Filosofia. Renato Ferreira é advogado, mestre em Direito e doutor em Ciência Política.
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