Lília Sendin *
Relato: Durante meu trabalho com mulheres vítimas de violência em uma grande cidade do interior do Paraná, uma jovem grávida do segundo filho, com uma filha pequena, procurou-me. O pai da jovem era presbítero na igreja, que eu frequentava, e o marido dela era diácono. O marido a agrediu fisicamente, inclusive quebrando-lhe um braço. Ela e sua mãe vieram ao escritório do projeto durante a semana, onde eu as orientei e auxiliei na elaboração de um boletim de ocorrência.
No dia seguinte, surpreendentemente, o pai da moça, o marido e até o pastor entraram em contato com o projeto, alegando que tudo estava resolvido, pois o agressor estava “arrependido” e planejavam “retirar” o boletim de ocorrência. Isso ocorreu antes da promulgação da Lei Maria da Penha. Notavelmente, não houve qualquer repreensão aos homens que ocupavam cargos de liderança na igreja. Curiosamente, se eles fossem pegos embriagados na rua ou em situações “duvidosas”, teriam sido publicamente repreendidos e destituídos de seus cargos. No entanto, a agressão contra mulheres parecia ser tolerada, desde que o agressor demonstrasse arrependimento.
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A jovem continuou frequentando a igreja, apesar de estar profundamente constrangida, não apenas pelos ferimentos físicos que sofreu, mas também pela consciência de que eu estava ciente de toda a situação.
Introdução
O caso em destaque revela uma problemática profunda e complexa que permeia algumas comunidades evangélicas. Apesar de não ser um privilégio exclusivo dessas comunidades, a violência contra a mulher é um tema de preocupação, particularmente quando observamos a maneira como algumas lideranças religiosas perpetuam uma interpretação machista e misógina da sociedade. Neste artigo, abordaremos os principais pontos levantados no relato e discutiremos a necessidade de uma reflexão crítica e transformação dentro dessas comunidades.
- Interpretação Machista da Exegese Bíblica
Um dos principais problemas mencionados é a interpretação machista da exegese bíblica que perpetua a submissão da mulher. Frases como “o homem é o cabeça do casal” ou “as mulheres devem estar caladas na igreja” são usadas para justificar a desigualdade de gênero. Essas interpretações antiquadas normalizam um ambiente onde a mulher é colocada em uma posição de submissão, perpetuando a cultura da desigualdade.
Publicidade- O Papel da Mulher como Submissa
A ênfase na mulher como mãe, esposa e “dirigente” do lar reduz o papel da mulher a um estereótipo limitado. A falta de reconhecimento da capacidade e potencial da mulher além dessas funções contribui para a manutenção de uma cultura que restringe as oportunidades e o empoderamento feminino.
- Pressão para Manter Relacionamentos Abusivos
A igreja muitas vezes coloca uma pressão esmagadora sobre casais para manterem relacionamentos mesmo quando há abuso ou insatisfação. A ideia de que “o que Deus juntou, não separe o homem” é prejudicial quando aplicada cegamente, sem levar em consideração os aspectos de segurança e bem-estar das mulheres.
- Falta de Apoio para Mulheres que Desejam se Separar
A falta de apoio psicológico, jurídico e financeiro para mulheres que desejam se separar dentro das comunidades evangélicas é alarmante. Essa ausência de suporte torna ainda mais difícil para as mulheres tomar a decisão de sair de relacionamentos abusivos, pois estão desamparadas e isoladas.
- Relatos de Mulheres Abusadas
São compartilhados relatos perturbadores de mulheres que foram vítimas de violência em relacionamentos com homens que ocupavam posições de liderança nas igrejas. A falta de responsabilização e punição para esses agressores é inaceitável e mostra a urgência de uma revisão dos valores e práticas das comunidades evangélicas.
- Enfrentando o Problema
É crucial que a igreja e suas lideranças repense(m) sua abordagem em relação à violência de gênero e ao apoio às mulheres que desejam se separar. A transformação começa com uma análise crítica da interpretação bíblica que perpetua o machismo e a misoginia. Além disso, é fundamental que haja uma revisão das práticas e valores para garantir que as mulheres que enfrentam violência doméstica encontrem apoio e segurança dentro das comunidades religiosas.
Conclusão
O relato apresentado destaca uma questão crítica que requer uma atenção séria dentro das comunidades evangélicas e, em última análise, em todas as esferas da sociedade. A interpretação da Bíblia, quando usada para justificar a submissão da mulher e a perpetuação da violência, precisa ser questionada e reformulada. É imperativo que as comunidades religiosas sejam locais de apoio e segurança para as mulheres que enfrentam violência doméstica, em vez de perpetuar uma cultura que as coloca em risco. Somente com uma mudança significativa na interpretação e práticas, a igualdade de gênero e o respeito pelas mulheres podem ser verdadeiramente promovidos.
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* Lília Sendin é desigrejada, servidora pública, formada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.
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