O Brasil decidiu sair da saidinha: com a aprovação, pelo Congresso, do projeto de lei que acabou com o benefício das saídas temporárias de presos em datas comemorativas. Escrevo sem saber, ainda, sobre o posicionamento presidencial de vetar ou não a proposta, mas creio, como registrado pelo trocadilho do título, que essa saidinha da saidinha seja, também, temporária. E fundamento essa crença não no mérito – aspectos positivos e negativos da proposta –, mas sim no fato de que se trata de uma proposta em flagrante contradição com o espírito de nossa Constituição. Eu e meu colega Ricardo de João Braga escrevemos, recentemente, colunas sobre a Constituição de 1998 e sua resiliência diante de impulsos sociais, ora para um lado ora para outro e, particularmente no momento atual, mais para a direita.
O filósofo americano Michael Sandel afirmou que a filosofia pode satisfazer nossas aspirações morais, mas a política lida com fatos recalcitrantes. Os fatos atestam: é mínimo o percentual de presos que aproveitam a saidinha para não retornarem, bem como mínimo é o percentual que aproveitam a saidinha para cometerem outros crimes. Porém, crimes são sempre notícia e o destaque é o fato de que o criminoso estava em saidinha. A deontologia do jornalismo profissional nos mantém no circuito de dar mais visibilidade às más notícias. Afinal, a manchete 98% dos presos que desfrutaram do benefício da saidinha voltaram para suas celas em absoluta ordem, um pouco mais felizes e, portanto, um pouco mais ressocializados não ultrapassa nem o primeiro gatekeeper das edições.
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Se em uma mesma pessoa convivem um filósofo e um príncipe da Prússia, com certeza não será a realeza a ceder passagem diante dos fatos recalcitrantes. O fascínio da violência toma de assalto a consciência ingênua. Nada mais fácil do que propor a solução do encarceramento definitivo. Os próximos passos lógicos, ainda que extraconstitucionais, serão a defesa da prisão perpétua e da pena de morte: na verdade, impera ainda a noção popularesca do bandido bom é bandido morto. Para o problema da insegurança pública. Estado, Estado meu, use essa violência mais forte do que eu! Você ganhou um monopólio, então use-o! Sim, de fato, a violência pode se constituir como um elemento do direito positivo, como aponta Hegel, mas mais como um acidente do que com algo inerente à sua natureza.
As pessoas têm a lamentável propensão a ver a execução bem-sucedida de uma violência como algo transcendental. O Estado exerce sua soberania como um rompimento simbólico com a ordem moral – para aquilo que a moralidade foi insuficiente, Estado neles. Essa é a lógica do Estado hobbesiano. Na ótica de um de seus analistas, John Stuart Mill, é o Estado que surgiu para impedir que os membros mais fracos da comunidade fossem predados por inúmeros abutres, era necessário que houvesse um animal de rapina mais forte do que os demais. O Leviatã. Nele, o anjo da morte se veste com os mantos oficiais.
Que os presos desfrutem de um conjunto de direitos que devem ser respeitados faz parte da ordem do Estado liberal: justamente aquele Estado que tem sua soberania contida por direitos e garantias individuais e sociais. Que a Constituição de 1988 tenha adotado o modelo liberal – nesse sentido aqui apresentado, com uma extensa relação de direitos e deveres de cidadania – é fato. Mas, como argumentamos no início, a resiliência da Constituição vem sendo testada ao seu limite.
A revogação das saidinhas, na prática, é como lixar uma cláusula pétrea. Pois determinadas sentenças, no Brasil, sem o benefício da saída temporária, convertem-se, de fato, em prisão perpétua (a cláusula pétrea lascada, em questão). A dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil. E a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos estão entre seus objetivos fundamentais. Nesse contexto que reafirmo a fundamentação de meu argumento: independentemente de se considerar a saidinha com base em estatísticas e fatos recalcitrantes, a sua ausência é incompatível com os pressupostos essenciais da república brasileira.
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