Essa é uma discussão que pode parecer muito óbvia, mas não se engane, ela é complexa, pois passa por um debate de conceitos que nem sempre estão devidamente colocados na sociedade. Há múltiplas formas para discutirmos essa questão, mas uma forma bastante interessante é a de debatê-la à luz das obras e falas de cineastas pretos e pretas, para assim entendermos o que assusta tanto a branquitude brasileira.
Vamos iniciar falando do jornalista e cineasta Cleyton Santanna, que, a partir do medo, decidiu criar o documentário “Qual Favela Vocês Construíram na Mente de Vocês?”, no qual discute “o medo da favela e do favelado, construído no imaginário coletivo pelo cinema nacional”. Aqui já começamos a entender que a coisa é um pouco mais complexa do que pode parecer. Imaginário social é, de forma resumida, as crenças, valores e símbolos que povoam a memória coletiva das comunidades humanas ao redor do planeta. E, trazendo para mesa os filmes da retomada do cinema nacional, como “Cidade de Deus”, Cleyton nos faz refletir sobre a insistência de uma representação estigmatizada sobre os corpos pretos no audiovisual brasileiro, sobre os impactos que isso causa na vida das pessoas pretas e no medo que os nossos corpos podem causar nos espaços, uma vez que as imagens que são massivamente produzidas a nosso respeito inspiram este sentimento. Vale a pena dizer que esse medo do negro não vem de hoje, guarda raízes profundas nas lutas de libertação dos pretos e pretas escravizados nas Américas. A branquitude sempre teve muito medo do que poderíamos fazer com a nossa liberdade.
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Dando continuidade, vamos agora falar da produtora executiva e diretora Fernanda Lomba que escreveu e dirigiu o filme “A Noite”, no qual discute igualdade racial. O filme foi escolhido pelo Consulado da Alemanha em São Paulo, em celebração ao dia da unidade alemã. O filme acompanha a personagem Janine, interpretada pela atriz Nina Barros, no dia de seu aniversário de 33 anos e mostra sua rotina como atendente de uma loja de conveniência. Os diálogos e a trama do curta-metragem nos provoca a pensar no quanto a igualdade racial ainda é mais um desejo de alguns membros da sociedade do que a realidade. É muito interessante notar a fala do personagem “Senhor N”, interpretado pelo ator Fernando Neves, quando afirma que ele e Janine são “iguaizinhos”. Mais interessante ainda é notar a reação dele a resposta de Janine que diz: “calma, calma. Também iguaizinhos não, né?!”. O riso exagerado que segue a cena, dado por Senhor N, é muito simbólico de como essa temática é tratada pela elite branca brasileira. Fernanda nos convida a pensar em como uma mulher preta, com formação universitária, precisa trabalhar como atendente nas madrugadas da vida para pagar as contas, já que não conseguiu uma bolsa de mestrado. E, ao mesmo tempo, consegue trazer conflitos pessoais comuns a todos os seres humanos, uma menina que se desentende com sua mãe, que faz aniversário, que termina uma relação.
Vamos falar agora do roteirista e diretor Lucas de Jesus Ferreira, que estreou o premiadíssimo filme “Quantos Mais?”, no qual problematiza o genocídio da população preta brasileira. O filme acompanha o personagem João, interpretado pelo ator Wesley Guimarães, que está se formando em sociologia e tem seu diploma confundido com uma arma por policiais e fica no ar a pergunta de quantos mais terão que morrer em vão. O curta-metragem é um verdadeiro soco no estômago da mentalidade racista brasileira, onde um corpo preto, independente do gênero, de idade e acesso à educação é sempre considerado perigoso, descartável, matável. O filme também expõe um conflito muito interessante entre o personagem João e o personagem Miguel, interpretado pelo ator Heraldo de Deus, onde Miguel ainda não consegue perceber que essas mortes de pessoas pretas não são fruto do acaso, mas são mortes políticas, de um Estado que forma seus agentes de segurança para matar preto, pobre e favelado. Um país onde uma criança preta, filha de uma empregada doméstica preta, é abandonada, propositalmente, para morrer num elevador pela patroa branca. Em que crianças pretas não têm paz sequer para brincar no portão de casa, pois são assassinadas pelo Estado. João afirma ao amigo Miguel, quase de modo premonitório, que muito em breve ele vai conseguir entender a complexidade dessas mortes. Esse aspecto é interessante, pois nos faz refletir em quais imagens tem construído a mentalidade do povo preto brasileiro, a ponto dele próprio não conseguir perceber de quem é a mão que segura a arma que está constantemente apontada para sua cabeça. E esse, certamente, é mais um mosaico que compõe a resposta da nossa questão a quem interessa invisibilizar cineastas pretos?
Juliana Vicente é a próxima cineasta da qual iremos falar! Há mais de uma década ela roteirizou e dirigiu o curta-metragem “Cores e Botas”, que acompanha a menina negra Joana, interpretada pela atriz Jhenyfer Lauren, que tem o sonho de se tornar paquita (uma espécie de bailarina de palco de um famoso programa de TV que teve seu auge nos anos 80 e 90). A história se passa nos anos 80, a família de Joana é bem sucedida e a apoia em seu sonho de ser paquita. O conflito da história, porém, está no fato da protagonista ser negra e, como é do nosso conhecimento, todas as paquitas eram brancas e tinham cabelo liso. Eram os anos de ouro do bullying e Joana mostrou ser muito corajosa ao enfrentar o preconceito de seus professores e colegas de escola ao decidir entrar na competição para se tornar uma paquita. O filme representa uma realidade muito recente da nossa História, comum a todas as meninas e mulheres pretas brasileiras, cujas feições e cabelos jamais seriam considerados bonitos e dignos de estar na TV. É interessante perceber como a apresentadora do programa tem o famoso lema de que todos os sonhos são possíveis, no entanto, para meninas como Joana isso nunca se mostrou algo concreto. Em uma narrativa fatalista ou mesmo com uma certa nuance racista, o que seria de Joana? Certamente não seria protagonista. Não teria história. Talvez fosse a amiga preta negligenciada pela família, de uma protagonista branca. Um mero alívio cômico, talvez. Mas no filme “Cores e Botas” Joana existe além do filtro racista e supera toda a discriminação racial que lhe é imposta.
Por último, mas não menos importante, falaremos do diretor e roteirista Yuri Costa, que deu vida ao curta-metragem “Egum”, filme que tive o enorme prazer em fazer a assistência de direção. O filme conta a história de um jornalista, interpretado pelo ator Paulo Guidelly, que está retornando para casa após anos de afastamento devido à morte violenta de um irmão, para cuidar de sua mãe, que sofre de uma doença desconhecida, interpretada pela atriz Valéria Monã. O filme é inovador para a cena audiovisual brasileira pelo fato de abordar a temática do racismo a partir do gênero de “terror afro-surrealista”. Para quem não sabe, a palavra “egum” é um vocábulo presente nas religiões de matriz africana e, principalmente na Umbanda, significa referir-se a um espírito falecido que vaga por aí e podendo ou não fazer contato com os espíritos encarnados, ou seja, vivos. O filme, entre outras questões próprias da sua trama, nos fornece uma visão afro-referenciada do problema não resolvido que foi a escravização dos homens e mulheres pretos nas américas. Essa carnificina aterrorizante que se faz presente nas nossas histórias individuais ainda hoje e esse desconforto não resolvido. Essas almas que até hoje não tiveram justiça nem para si próprias e nem para seus descendentes. E ainda pior, continuamos produzindo tamanhos absurdos e injustiças raciais enquanto sociedade e, por isso, o filme Egum nos alerta que “nossos ancestrais não estão
PublicidadeImagina se, no lugar de termos as insistentes narrativas acerca da população preta, representada sempre de forma pejorativa e maldosa pelo complexo industrial branco do audiovisual comercial, a regra fossem as narrativas produzidas pelos cineastas que vimos acima? As pessoas pretas, e também as brancas, teriam imagens muito diferentes povoando seu imaginário. Não supomos que o problema do racismo seria solucionado, mas, seria, como já está sendo, uma potente ferramenta de luta e combate ao pensamento e as práticas racistas.
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