Por Fábio Kerche*
A cena toda foi assustadora: Roberto Jefferson (PTB), um aliado do presidente e candidato Jair Bolsonaro, reage a balas e granadas à ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) de conduzi-lo a um presídio após romper as regras de sua prisão domiciliar – entre outros motivos, ele utilizou redes sociais para vociferar grosserias e ameaças contra a frágil democracia brasileira e suas instituições. Três agentes da Polícia Federal (PF) aparecem no vídeo divulgado pelo próprio Jefferson com um ar despreocupado indo cumprir a ordem judicial no interior do estado do Rio de Janeiro. Sem coletes à prova de balas e sem empunhar armas, subestimaram o homem branco, coisa que podemos imaginar que não fariam se fosse um homem negro. As balas e as granadas arremessadas pelo aliado de Bolsonaro, felizmente, não feriram gravemente os policiais federais.
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Outra cena divulgada por alguém próximo de Jefferson mostra um quarto agente da PF, que parece ter chegado após os colegas serem feridos, conversando tranquilamente, e até sorrindo, com o aliado de Bolsonaro. O tal “candidato padre”, aquele que fingiu disputar à Presidência da República pelo PTB e que tinha a função de servir como escada para Bolsonaro em debates do primeiro turno, servia como testemunha. Nem o fato de Jefferson ter ferido agentes da PF parece ter constrangido o policial que, aliás, fez questão de se diferenciar de seus colegas “burocratas”.
A postura de todos os agentes da PF parece ter sido bem diversa daquela que nos acostumamos a ver durante a Lava Jato. Primeiro porque a prisão do já preso Roberto Jefferson não foi acompanhada pela imprensa. Durante o tempo em que Moro e Dallagnol fingiam não ter lado, pudemos ver com uma frequência assustadora a imprensa chegando à casa de um político ou empresário antes dos próprios agentes cumprirem a determinação da Justiça. Segundo, é notável também a diferença de postura dos agentes da PF entre a prisão de domingo e as do período anterior. No lugar da parafernália usada por policiais na condução coercitiva de Lula, vimos tranquilos agentes sem armas aparentes, sem coletes ou roupas camufladas (aliás, por que roupas camufladas na cidade?).
O que está acontecendo com a Polícia Federal?
A PF, ensina o professor da USP Rogério Arantes, era uma antes de 2003 e virou outra a partir dos governos petistas. Com o governo de Lula, houve um incremento de recursos, um aumento expressivo no número de integrantes e uma profissionalização da carreira. Além disso, foi durante os governos petistas que se assegurou à instituição, que é subordinada ao ministro da Justiça e ao presidente da República, o que eu e a professora da UFMG Marjorie Marona chamamos de “autonomia conjuntural”. Embora não esteja elencada na legislação, como a autonomia do Ministério Público prevista constitucionalmente, os governos petistas asseguraram grande autonomia à PF. Para demonstrar isso, basta lembrar que o ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, deixou a Lava Jato correr solta contra o PT e seus aliados. O então chefe do chefe da PF dizia que não tinha instrumentos para interferir.
Bolsonaro mostrou que Cardozo não colocava limites na PF porque não queria ou não podia politicamente. Há uma série de instrumentos institucionais disponíveis para que o Poder Executivo tenha alguma ingerência na PF. O atual governo, por exemplo, trocou a direção da PF diversas vezes e retirou delegados de investigações que chegavam perto do clã Bolsonaro por meio de promoções – o famoso “cair para cima”. O ex-ministro da Justiça Sergio Moro, hoje transformado em senador-assessor do presidente, saiu do governo alegando que Bolsonaro estava interferindo indevidamente na autonomia da PF. Na verdade, o problema ali é quem teria o comando do órgão.
Há uma parte das atribuições da PF que a direção da instituição realmente tem discricionariedade menor. No seu papel de Polícia Judicial, se um juiz mandar os agentes cumprirem uma ordem de prisão, por exemplo, não cabem questionamentos. A PF apenas executa uma determinação advinda do Poder Judiciário. Mesmo nesses casos, entretanto, a força empregada, o número de agentes e outros detalhes operacionais são de decisão da própria PF, e não da Justiça.
Por tudo isso, baseado no que reportou a imprensa nos últimos anos, é de difícil entendimento a razão do apoio quase-maciço dos agentes da PF ao presidente Bolsonaro. Mesmo após o ex-capitão ter quebrado a promessa de dar aumento salarial aos policiais e das constantes interferências na instituição, são poucas as iniciativas de dissenso vindas da corporação contra a atual administração. Talvez por compartilharem os mesmos valores de Bolsonaro, a maioria dos agentes virou as costas para Lula e para o PT depois de anos de bonança e autonomia. A pergunta é se as cenas ocorridas no último domingo, com a agressão a colegas de corporação, pode reforçar a ala minoritária que questiona o aparente consenso em torno de Bolsonaro – como os delegados que assinaram um manifesto em apoio à democracia .
Atirar contra a polícia pode não somente ter confundindo o eleitor bolsonarista, mas também enfraquecido a quase-unanimidade em torno do candidato aliado de Jefferson. A PF não se mostrou “racional” nos últimos anos e apoiou aquele que enfraqueceu a instituição. Vejamos se ao menos a solidariedade com os colegas abala essa ligação.
*Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University e atualmente está na University of Toronto. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diferentes publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.
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