Em São Felipe, Recôncavo da Bahia, no princípio da tarde de Sexta-feira Santa, surge um cortejo de negros e negras portando vistosos guarda-sóis e sombrinhas em direção ao centro da cidade. Que diferença fazia aquele adereço para quem trabalhava de sol a sol no campo aberto? Estudos que abordam a estrutura do poder do povo iorubano discutem o guarda-sol e o seu valor simbólico. Atento para notícias que datam do século 19, conforme descreve Silva (1997, p. 176), citando o reverendo Samuel Johnson e a questão do uso do guarda-chuva que merece atenção especial no que diz respeito ao símbolo do poder na herança iorubana. Na dúvida, indago: qual seria o mito de origem daquele povo da roça? Que valores teria o imaginário ou a memória de sujeitos diversos e uma mesma raiz em diferentes lugares? Em que medida é possível considerar esses símbolos e outros aspectos das vivências negras na diáspora como ponto de partida para uma reflexão sobre identidade e memória daquela gente onde eu também me incluo? Não tenho respostas para essas minhas inquietações apenas algumas perspectivas provisórias.
Durante as festas da Semana Santa, dona Idalina, a minha mãe, não descuidava desse povo da roça. Cedo, eram reservados tachos de barro assoberbados com moquecas de bacalhau e de miraguaia. Tudo para os amigos e fregueses que chegavam para a cerimônia do beija-pés do Senhor.
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Tratava-se da gente preta que morava nas roças. Meus pais eram santeiros e seus melhores clientes vinham de longe. Chegavam descalços, passavam uma água nos pés, faziam uma rápida ceia e corriam para o beijo no esquife do Nosso Senhor Morto e na fita azul que pendia da cintura de Nossa Senhora das Dores. Ambas as imagens eram colocadas entre duas bandejas onde não paravam de tilintar moedas, sob o olhar cuidadoso do Seu Theodomiro, saudoso e respeitado sacristão da igreja matriz. Na volta para a casa, não precisava pressa. A lua cheia acompanhava os passos firmes na terra, desta vez novamente descalços.
A ceia em nossa casa acontecia à semelhança do almoço do axexê, como realizamos nos terreiros de candomblé. Na tecelagem desta rede afetiva e cultural, volta uma cena importante da minha infância. Toda Sexta-feira Santa, pela manhã, chegava da Fazenda Copioba uma frigideira de palmito preparada por minha madrinha, D. Iaiá Pinheiro. Eu nunca esqueci aquele sabor com afeto.
As famílias no recôncavo compartilham ainda hoje o mesmo cardápio, celebrando o que pode ser considerado o Axexê de Jesus Cristo, com peixe, palmito, muito dendê e tudo aponta para “eternidade do agora”.
O Axexê acontece no candomblé por ocasião do falecimento de qualquer membro da comunidade. Durante a obrigação ritual, todas as pessoas se juntam para uma dança que dura sete noites quando são oferecidas moedas depositadas numa metade de cabaça exposta no meio da sala. No último dia, todos sentam-se à mesa para a refeição com o egun, o espírito da pessoa falecida.
PublicidadeNa Sexta-feira Santa, repetimos a vivência do presente do passado. É o presente vivenciado, enquanto memória na sua complexidade dinâmica. A julgar pela semelhança do acontecimento, é possível que estejamos vivenciando na Semana Santa o ritual do Axexê de Jesus Cristo, reinventado por mulheres negras escravizadas no exercício civilizatório de culto aos ancestrais, conforme o pensamento africano recriado na diáspora.
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