Pablo Marçal causou um terremoto na campanha eleitoral da maior cidade do país. Na abertura das urnas do primeiro turno alguns o proclamaram “o grande vencedor, independentemente do resultado”. Outros, mais comedidos, enfatizaram o racha que ele causou no bolsonarismo e a saia justa na qual colocou o ex-presidente. Aqui pretendemos refletir sobre algo um pouco diverso: o que Marçal mostra sobre a forma de reprodução da extrema direita e a natureza do movimento.
Marçal é um produto moderno como nenhum outro na política. Por um lado, não possui prática alguma no trato da coisa pública, militância política ou experiência relevante para os cargos que almeja. Por outro, o conteúdo de seu discurso afina-se quase com perfeição a características centrais do nosso capitalismo em crise social permanente: individualismo, consumismo, ideal de prosperidade, amálgama de religiosidade cristã amorfa, ausência de crítica social. Tudo se reduz a aceitar o sistema social como ele está e vencer nele à base de trabalho, boas escolhas e enquadramento mental (“mindset”) adequado. A forma do discurso é a quintessência das redes sociais, sua culminância até o momento: ironia, agressão, “memeficação”; tudo isso temperado pelo total desapreço pela verdade e o desrespeito aos adversários. Marçal é o rei na simplificação, na deturpação conveniente e no impacto. Um comunicador de massas moderno por excelência.
O que ele nos ensina?
Tradicionalmente, a esquerda seleciona suas lideranças a partir de um processo de “socialização” política específico. Interessados em política e com alinhamento ideológico precisam militar no partido, passar por cursos de formação, ascender na hierarquia interna da organização, mostrar lealdade ao grupo, conquistar oportunidades eleitorais em que carregam lealdades de movimentos sociais ligados ao partido e grupos internos da agremiação e, ao longo do tempo, vão subindo a escada de relevância. A necessidade de compreender um projeto e um discurso de crítica à sociedade – daí sua perspectiva de esquerda, a crítica – e a lealdade ao grupo despontam como elementos centrais.
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A direita tradicional (vejam que distinguimos essa da “extrema direita” que designa Marçal e o bolsonarismo, os quais, para simplificar, diferenciam-se pelo seu descompromisso com o Estado Democrático de Direito) escolhia seus candidatos e futuros dirigentes pelo processo de seleção de lideranças locais tradicionais. Uma certa “aristocracia” local, como a batizou um amigo. Eram o comerciante, o fazendeiro, o médico, o líder religioso e o industrial de destaque. As linhas de pertencimento ao grupo, a membresia, eram mais fluidas, e menor a fidelidade a rótulos partidários específicos. A consistência vinha por um lado da posição ideológica tradicional, conservadora (que torna desnecessária a formação de discursos críticos) e, por outro, da rede clientelística que é a marca de nossa política brasileira (o que se aplica também em alguma medida aos projetos políticos da esquerda).
Marçal entrou na disputa em São Paulo por meio de um micropartido, com uma preparação muito rápida e um discurso que apresentava vazios impactantes e que, sobretudo, apoiava-se na predação da imagem alheia, mostrando que o fenômeno Bolsonaro ganhou seu modelo 2.0.
Bolsonaro surgiu como um outsider, sem apoio nas redes políticas tradicionais, sem tempo de tevê, sem dinheiro, mas com forte presença e impacto nas redes sociais. Marçal, agora, leva o fenômeno ao paroxismo, pois repete o elemento outsider, também carece de apoios tradicionais, tempo de tevê e recursos, mas é um gênio na comunicação digital.
Distinta da esquerda, com sua coleta de militantes e formação e solidificação de lealdades, assim como da direita antiga, baseada na política tradicional, do contato real, das redes de apoio e de clientela, a extrema direita inverte o processo. Não se trata de escolher alguém e colocá-lo à prova numa eleição. Mas sim de abrir as portas para qualquer um que venha do mundo digital e que consiga amealhar votos. Primeiro vem a eleição; depois os vencedores tornam-se lideranças.
A extrema direita hoje constitui-se num arquipélago de comunicadores digitais que flutuam em torno de Bolsonaro a depender da conveniência. No fundo, suas raízes agarram-se ao mundo digital. Esse é o abalo que Marçal causou e mostrou. Não há redes de lealdade, não há arenas de consolidação, de agrupamento.
A ideologia se consolida no darwinismo das redes sociais, nas quais o conservadorismo cristão amorfo, o individualismo e a teologia da prosperidade são os elementos comuns que provêm não de uma fonte, de uma escola, mas do senso comum, de valores dispersos e permeados ao mundo contemporâneo dos quais cada um pode beber. O cordão sanitário que mantém alguma coesão são o antipetismo e a crítica à esquerda.
Vê-se então que qualquer um com poder de comunicação no mundo digital, que comungue de ideias simples de senso comum sobre “cidadão de bem”, religião cristã, “o valor do trabalho”, e que seja devidamente “anticomunista”, pode entrar no movimento de extrema direita. Dessa forma, não há por que se exigir comedimento dos novatos ou lealdades a lideranças já instituídas. A velocidade pode ser total e o céu é o limite, e tudo isso é Pablo Marçal.
Como resultado, o movimento de extrema direita é um grupamento que avança forte na sociedade, mas suas lideranças são essencialmente instáveis, voláteis e passíveis de contestação interna, muito mais do que se vê na esquerda e na direita tradicional.
Marçal mostra que ele é sim um fenômeno das eleições 2024. Contudo, tudo pode acontecer em 2026, desde eleger-se presidente até ser um nada. Se a onda da extrema direita continuará avançando, ela o fará com seus líderes surgindo desse estado de natureza organizacional, em que os mais fortes no mundo digital sobrevivem e tornam-se as lideranças a serem destruídas no passo adiante. Bolsonaro deve, em algum momento, ser engolido por essa dinâmica, e embora o movimento tenha energia, sua natureza mostra que seus líderes de hoje são incógnitas para amanhã. Para eles, tudo pode acontecer. O movimento é consistente. Suas lideranças não.
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